A linguística ensina-nos que o signo/nome é
arbitrário. Lido pacificamente com esta arbitrariedade, até porque também não
vejo como poderia ser de outro modo. O que, confesso, aceito com alguma
dificuldade é o facto não ter tido uma palavra a dizer na escolha do meu nome
próprio, esse local de construção tão pessoal e intransmissível. Desde muito
cedo, se tornou claro para mim que o nome pelo qual assinava não era o meu nome
real, o que trazemos do nosso registo oculto para a luz. Era um nome invulgar,
com uma sonoridade forte, formado por uma só palavra e… único. Sim, durante
cerca de três décadas, eu nunca encontrei, cara a cara, alguém que se chamasse
Liliana e a primeira pessoa que encontrei chamava-se, de facto, Liliane. Esta
sensação de uniqueness incomodava-me,
não só porque me expunha desnecessariamente, mas também porque, como vim a
saber a certa altura, ele se destinava a evocar, no meu padrinho de batismo, a
memória de um amor inacessível que o fez percorrer alguns caminhos da vida um
pouco em contramão. Aquela história não era a minha e, talvez por isso, a
familiaridade que fui estabelecendo com o meu nome nunca foi grande. Digamos
que nunca nos conseguimos tratar por tu.
Até que, um dia, algo inusitado
aconteceu. Encontrei, na rua, o meu velho amigo José Bacelar (nome fictício),
um senhor de 87 anos por quem, desde a minha juventude, nutro uma profunda
estima a qual sempre foi amplamente retribuída. Vivíamos ambos no mesmo
quarteirão o que fazia com que os nossos encontros fossem frequentes. A sua idade,
já um pouco avançada, aliada a um problema de saúde de alguma gravidade, não
lhe permitiam grandes caminhadas sem a supervisão da família e eu gostava de o
acompanhar, sempre que podia. As nossas conversas, outrora reconfortantes e
entrecortadas de alegres risadas, foram dando lugar a diálogos repetitivos e estórias
truncadas que, ora ficavam pela metade, ora continuavam com outros personagens
vindos não se sabia bem de onde. Pois, naquele dia, o nome daquela rapariga por
quem ele se tinha perdido de amores, quando ainda estudante em Coimbra, não lhe
vinha à memória e ele queria, mais uma vez, contar-me a estória. Ainda intentei
várias hipóteses, mas não, não era nenhum daqueles nomes. Não fazia mal,
lembrar-se-ia mais tarde e, no próximo encontro, ele dir-me-ia o seu nome. E
despedimo-nos. Tinha-me afastado uns escassos metros, quando o ouvi chamar-me:
Tatiana, já me lembro! Chamava-se Maria da Graça!
Tatiana! Aquele nome atingiu-me como
um raio. Um turbilhão de múltiplos acordes afetivos foi subindo de tom até
sentir a cabeça andar à roda, as pernas tremerem e o coração disparar, numa
correria louca. Em suma, a minha vida inteira estremeceu de alto a baixo ao
ouvir aquele nome o qual, finalmente, reconhecia como meu. As semanas que se
seguiram foram algo perturbadoras, povoadas de sonhos estranhos, uns quantos
devaneios e até a ocorrência de um episódio meio caricato, cuja lembrança me
faz sorrir frequentemente. É que, um belo dia, após ter presidido a uma reunião
profissional, a secretária trouxe-me a ata, para assinar, e eu assinei com o
meu novo nome. Acreditem que não foi
nada fácil disfarçar o equívoco. Só espero que um dia destes ninguém me ouça
dizer, à semelhança da personagem Judite, da obra Nome de Guerra, de Almada Negreiros, “ Eu não me chamo Liliana, mas
não digas nada a ninguém. O meu nome verdadeiro é …” Só que, nesta altura, Judite
calava-se sempre. Espero que eu faça o mesmo. Não me apetecia nada ser
internada por algo tão benigno.
Pois, se vos conto isto, é porque
gostaria que o nome com o qual passarei a assinar as minhas postagens, neste Blogue, não fosse entendido
como um nome fictício destinado a mascarar qualquer anonimato, conceito com o
qual lido muito mal. Estou certa de que, a partir da explicação dada, todos os meus
amigos e conhecidos, a quem vou apresentar este espaço de encontro, me
identificarão facilmente. Afinal, é para isso que serve o nome , para
nos identificar no espaço social. A identidade é outra coisa e sobre essa outra
coisa, eu só posso dizer, citando o poema dito e cantado por Maria Bethânia, “
eu não sou o meu nome…”.