terça-feira, 15 de outubro de 2013

A MADRINHA (10)

A vida na casa dos Álamos nunca mais foi a mesma, depois da chegada de Alexandre. O que fora entendido como algo que afetaria só a vida de Maria Teresa vinha, agora, à luz, como uma mudança radical pronta a abalar toda a estrutura da família e dos papéis que, cada um, nela desempenhava. A tia Clotilde, cujo avental era um atributo de poder e lhe conferia um estatuto quase obscuro, por demais aceite pelos homens da casa, foi a primeira a ser atingida:  
      - Bem, tia, já passou uma semana, já não há sobras da boda, é altura de cada um tratar da sua vida. A partir de amanhã, eu própria prepararei as refeições para mim e para o Alexandre. Entretanto, aqui, no rés-do-chão, tudo ficará como dantes. E vamos estar todos juntos, sempre que quisermos.
A tia não respondeu. Pousou a colher com que provava o ensopado de borrego para o jantar e procurou a cadeira mais próxima. Ia a dizer qualquer coisa, mas limitou-se a abrir e fechar a boca, de espanto. Valeu-lhe a governanta que veio, em seu auxílio, com um copo de água com açúcar. Ia fazer-lhe bem e não valia a pena ficar assim, afinal de contas, continuavam todos juntos, paredes-meias. Mas a tia não se conformava. E foi assim, num pranto, que o cunhado a veio encontrar, no regresso da sua reunião com os amigos, no café do Antunes:
      - Mas o que é que aconteceu? Que pranto é esse?- perguntou surpreso.
      - Nada de especial – respondeu Clotilde, em tom sarcástico – é só a tua filha que já não quer tomar as refeições connosco e que parece que não quer nada com o rés-do-chão desta casa.
      - Que exagero! – atalhou a governanta – receando uma reação semelhante da parte do pai de Maria Teresa.
      - Exagero?! Mas tu não ouviste o mesmo que eu ouvi?! – perguntou a tia, indignada.
      - Claro que não! E se o senhor Meireles cá estivesse, também não teria ouvido. Não foi nada disso que a menina quis dizer.
      - Bem, estou a ver que o melhor que tenho a fazer é falar com a Maria Teresa. E subiu ao primeiro andar, onde a filha preparava os legumes para a sopa do dia seguinte.

Maria Teresa pô-lo ao corrente do que pensava fazer e pediu-lhe, encarecidamente, que a apoiasse nessa ideia. Era o melhor para todos. Seria um mau começo, aquela dependência total do patriarca da família e não lhe parecia que o Alexandre se sentisse muito feliz com isso. Afinal, para que teriam servido todas aquelas obras? Para continuarem todos como se nada tivesse acontecido? Além disso, tinha a certeza que o Alexandre continuaria a apoiar os pais e a ajudá-los, quando fosse preciso. Ele não tinha sido comprado por ninguém.
À medida que a filha ia falando, Antero sentia avolumar-se o medo de ter perdido a filha tal como a conhecera até ali, mas, ao mesmo tempo a voz da razão segredava-lhe que aquilo fazia todo o sentido e que a sua situação, na casa, deveria ser repensada. De repente, inundou-o uma sensação de mal-estar. E os outros dois filhos? Seria que eles também sentiam aquele desejo de se livrarem do jugo do “velho patriarca”? Assolou-o um aperto, no coração. E as criticas que lhes tecia não seriam um pouco injustas, por não terem a tal “ margem de manobra” de que, há uns tempos atrás, lhe tinham falado? E desceu, cabisbaixo e pensativo.
      - Estás a ver como eu tinha razão? – perguntou a cunhada,  ao vê-lo naquele estado – também ficaste surpreendido, não é verdade? 
      - Sim, mas não pelas mesmas razões que tu. Fiquei surpreendido com o discernimento da Maria Teresa. Afinal, acho que apesar de ter sido criada sem mãe, fizemos um bom trabalho com ela. Melhor do que com os irmãos! Mas nunca é tarde…
Clotilde franziu o sobrolho. O que é que ele quereria dizer com aquilo? Mas, para dizer a verdade, também não lhe apetecia falar mais daquele assunto. Já tinha que chegasse para o resto do dia.

O jantar decorreu mortiço, sem os risos e as picardias habituais entre Maria Teresa e os irmãos, frequentemente aquietadas ou exacerbadas pelo pai ou pela tia. Quando se preparavam para abandonar a mesa, Antero dirigiu-se ao Alexandre:
      - Gostava de te dar uma palavrinha ali, no escritório. Importas-te de me acompanhar?
Alexandre hesitou, por um momento. Em seguida, perscrutou os cunhados e perguntou:
      - Tem a certeza que não é nada que possamos tratar aqui?
      - Claro! Claro, que pode – respondeu Antero, pouco à vontade, voltando a sentar-se.
Os outros seguiram-lhe o exemplo.
      - Parece que vocês têm planos diferentes dos meus, para a vossa vida- começou  Antero, dirigindo-se à filha e ao genro. Se calhar já devíamos ter falado nisso, mas pensei que podia contar com o Alexandre para me ajudar a levar a casa para a frente e modernizar algumas coisas por aí, mas pelo visto, querem seguir a máxima “casamento, apartamento.” E estou sozinho, outra vez!   
      - Peço imensa desculpa- interrompeu Alexandre- mas o senhor não está, nem nunca estará sozinho. O que eu e a Maria Teresa queremos é que o senhor possa contar igualmente com todos nós. Eu não quero nenhum estatuto diferente do dos seus filhos. Tenho conversado muito com eles e aposto que o senhor ficaria muito surpreendido se os ouvisse e lhes desse alguma credibilidade.
      - Pelo visto, não perdes tempo! Ainda agora chegaste e já estás do lado deles! – exclamou Antero, com algum desalento.
A estas palavras, Maria Teresa reagiu, com alguma veemência:
      - Ó pai, o pai não está a dizer que gostaria que o Alexandre estivesse contra os meus irmãos, pois não? E também não está a dizer que os meus irmãos estão contra si, ou estará? Mas afinal, o pai quer a família unida ou separada?
Perante o silêncio do pai, Maria Teresa parecia disposta a continuar, mas foi interrompida por Armando, que entretanto se tinha levantado da mesa, seguido do irmão, passou por trás dela e, colocando-lhe a mão no ombro, disse:
      - Deixa, mana, trata da tua vida e não te preocupes connosco.
Aparentemente recomposto do efeito das palavras de Maria Teresa, Antero dirigiu-se aos filhos:
      - Mas aonde é que vocês vão? Não têm nada para dizer?
      - E vale a pena dizer alguma coisa? – retorquiu Carlos, continuando em direção à porta.
      - Já agora gostava de saber a vossa opinião, já que, hoje, parece que toda a gente tem contas a ajustar comigo. Ao menos, desembuchem todos, de uma vez!
      - Pois, então, vou dizer-lhe o que penso- começou Carlos, retrocedendo alguns passos – acho que se quer o Alexandre a trabalhar consigo, deve pagar-lhe um salário que lhes permita organizarem a vida deles como eles quiserem e, sim, acho muito bem que tomem as decisões deles sozinhos, sem terem que se sujeitar às regras, nem aos horários da família. De contrário, não tardará que seja o pai a determinar quando é que ele precisa de trocar de botas.
      - Já acabaste? – perguntou Antero, aparentemente mais calmo. Fez uma pequena pausa e continuou:
      - Dizem que a noite é boa conselheira e estamos todos a precisar de dormir sobre tudo isto. E virando-se para Clotilde:
      - E tu?! Não dizes nada? Se tiveres alguma reclamação a fazer, aproveita agora, que estamos em maré de protesto...
      - Eu…eu… - balbuciou a cunhada - gostava que continuássemos a tomar o pequeno-almoço juntos!
      - Claro que sim, respondeu Maria Teresa, seguida dos restantes membros da família. Nós íamos lá perder os seus mimos matinais! E, a propósito, quando é que voltamos a ter aquele bolo de mel de que tanto gostamos?
      - Amanhã mesmo, fica prometido! – respondeu a tia, recuperando o alento perdido e devolvendo-se aos seus afazeres .    

Na manhã seguinte, lá estava o bolo de mel, acabado de fazer e a perfumar toda a cozinha, a maior possessão do território da tia Clotilde. Mas Antero, não estava. Segundo o capataz, tinha saído cedo, a cavalo, e ainda não voltara. Era a primeira vez que tal acontecia e todos os presentes se inclinavam já para uma atitude de retaliação, por parte de Antero, quando este entra apressado, desculpando-se pelo atraso e comentando, bem- disposto:
       - E logo hoje, que me arriscava a ficar sem bolo!
E, mudando de assunto:
       - Temos que falar sobre o olival das Estevas. Depois da safra, se calhar o que deveríamos fazer era arrancar aquelas oliveiras e substituí-las por oliveiras novas e de outra espécie. Querem lá ir, dar uma vista de olhos?
       - O primeiro a responder foi Armando:
       - Se o pai quiser, podemos acompanhá-lo, mas não precisamos de lá ir, para vermos o que já devia ter sido feito há muito tempo. Essa colheita tem-nos saído muito cara e essa azeitona funde muito mal. Esse olival é, de facto, o pior, mas, progressivamente, deviam ser todos replantados.
      - Acabavam por se ir pagando uns aos outros- acrescentou Carlos, com ar de entendido, para grande surpresa do pai.
      - E tu, Alexandre, o que é que achas de tudo isto?
      - Concordo com os seus filhos. Além disso, qualquer dia vem por aí a mecanização e é bom que não lhe barremos o caminho.
      - Bem, então parece que estamos todos de acordo! – rematou Antero, com algum alívio.
      - E porque é que não deveriam estar, perguntou Maria Teresa, trocando com a tia um olhar cúmplice.

A conversa selou um recomeço na Casa dos Álamos. E, com grande surpresa, a aldeia foi-se habituando a um Antero Meireles quase sempre acompanhado dos filhos e do genro, não só em situações de trabalho, como de lazer, como era o caso dos encontros de fim-de-tarde, no café da aldeia. A princípio, os seus pares mostraram-se um pouco constrangidos, porque alguns dos assuntos em discussão tinham sido, até ali, prerrogativa dos chefes de família, mas rapidamente perceberam que tinham de se habituar a torna-los extensivos aos novos parceiros de negócios. E, a pouco e pouco, cada um deles foi trazendo também os filhos ou os genros a esses encontros, transformando-os em algo de diferente, que começava a agradar a todos. Havia naqueles encontros de gerações uma promessa velada de continuidade que não deixava de os sossegar.
      - Isso são coisas do Alexandre – diziam uns.
      - Eu diria que são coisas da Maria de Jesus, que sabe muito bem como dar a volta às coisas – diziam outros.
      - Seja como for, assim é que deve ser! - comentavam os jornaleiros, a quem ninguém pedia opinião, mas que, nem por isso, deixavam de a dar.

Mas as maiores mudanças ainda estavam para vir. Quase no fim da safra do azeite, Maria de Jesus, apercebeu-se que a azeitona do pequeno olival do Zé Mouco, que lhe assegurava o azeite para o sustento da família, ainda estava por apanhar, devido à doença prolongada da mulher. Todos anos, o marido tirava um dia ou dois ao trabalho que prestava por conta do Meireles e, juntamente com a mulher e a filha, apanhavam a azeitona. Nesse ano, com a mulher doente, a filha a ter de cuidar dela e ele a não poder prescindir da jorna devido às enormes despesas que a doença dela lhe acarretava, a azeitona lá estava, por apanhar. Maria de Jesus falou com os filhos:
      - Falei com algumas mulheres que não se importam de ajudar a apanhar a azeitona do Mouco, mas precisamos de um homem ou dois para a varejar. Entre vocês, quem é que está disponível para ajudar?
      - O problema é que, esta semana, temos uma encomenda grande para entregar – disse o Guilherme, corroborado pelo pai.
      - Não é preciso, eu e o Eduardo vamos lá, só tenho que avisar o meu sogro - comprometeu-se Alexandre e assim fez.
      - A azeitona do Zé Mouco? A tua mãe tem a certeza que ela está por apanhar? – indagou o sogro, algo surpreendido.        
      - Claro que tem! O senhor sabe como é a minha mãe, não se mete na vida de ninguém, mas está sempre atenta a estas coisas – confirmou Alexandre.
      - A quem o dizes!... Pois vamos fazer assim: amanhã, acaba-se a apanha na Cabeça Alta e, antes de se mudar para outro olival, leva-se o rancho ao olival do Mouco e aquilo apanha-se que é um instante. Diz à tua mãe que esteja descansada que não é preciso cá ninguém a ajudar, nós tratamos disso.
Mas… o Mouco também faz parte do rancho. Ele nem vai acreditar! – retorquiu Alexandre, com alguma dificuldade em, ele próprio, acreditar no que estava a ouvir.
      - Ainda bem, porque assim poupa-me o capataz. Têm lá o dono do olival, para tomar conta do trabalho.
    
Quem não gostou muito desta atitude do Meireles foram os outros fazendeiros que, nas suas reuniões habituais, não se coibiram de o alertar para os perigos dessas familiaridades.
      - Ó Meireles, não achas que exageraste um bocadinho?! Não achas que estás a amolecer um bocado, com essa gente? Qualquer dia, não tens mão neles! Se a moda pega, não tens mãos a medir! – advertiu o Rodrigues, da Quinta de Cima.
      - Isso preocupa-me pouco. E, sabes uma coisa? Há muito tempo que não dormia uma noite descansada, como nessa noite. É capaz de ser um bom remédio para as insónias!
E a conversa ficou por ali.
Mas o destino gosta sempre de ter a última palavra e, desta vez, fez mesmo questão de se pôr do lado do Meireles.

Tinham passado alguns meses e chegara o tempo das vindimas. Depois de toda a azáfama da preparação das adegas, chegara a vez dos cachos dourados, destinados à secagem, reluzirem nos passadouros, sob o olhar vigilante dos capatazes que, ao menor sinal de mudança de tempo, organizavam a sua recolha apressada para debaixo dos respetivos telheiros. Pois, num desses fins-de-semana de verão, em que nada faria prever qualquer mudança de tempo, dois acontecimentos se vêm a conjugar para que a aldeia ficasse quase deserta e os passadouros à mercê do acaso. Por um lado, tinha tido lugar, numa aldeia bastante afastada dali, a primeira missa celebrada por um filho da D. Fernanda Gouveia, recém – viúva, e que todos os seus pares tinham feito questão de acompanhar naquele ato simbólico, ao qual se seguiu um almoço demorado; por outro lado, tinha lugar a festa anual em honra de Santa Eufémia cujas celebrações religiosas tinham decorrido com toda a normalidade, debaixo de um calor ardente, mas cujo recinto, destinado aos festejos pagãos, se situava em campo aberto a cerca de 1,5 km da aldeia. Com o chegar da noite, as luzes, o barulho e a alguma euforia, poucos foram os que se aperceberam que as condições meteorológicas se tinham alterado completamente e só quando o vento se levantou, em fúria, e a chuva começou a cair, em catadupa, é que a população se apercebeu que a única coisa que poderia fazer era tentar pôr-se a salvo da intempérie.
O Zé Mouco, cuja mulher continuava doente e que tinha ficado em casa a fazer-lhe companhia, enquanto a filha ia até à festa com as amigas, apercebeu-se da mudança de tempo e, sabendo que a família do patrão estava toda ausente, dirigiu-se ao passadouro com um vizinho. Maria de Jesus, sem nenhum dos homens em casa, tinha-se socorrido de um garoto que encontrara no caminho e também tinha acabado de chegar. Os quatro conseguiram pôr a salvo toda a produção das uvas destinadas à secagem. Quando o capataz chegou, encharcado até aos ossos, encontrou-os acoitados sob o telheiro, em amena cavaqueira, à espera que a chuva passasse. Aliviado, não pode deixar de exclamar:
      - Nem imaginam como o senhor Meireles vos vai ficar agradecido! Ele detesta ver coisas estragadas!
      - Não é preciso agradecer. A vida dá-nos sempre a oportunidade de retribuirmos favores, não achas, Zé? – perguntou Maria de Jesus sem , contudo, esperar qualquer resposta. Os atos falavam por si.

Quando se voltaram a encontrar, no café da aldeia, nenhum dos amigos mencionou o acontecido. Foi o Meireles quem puxou a conversa.
      - Então, o prejuízo com as uvas foi grande?
      - Claro, que foi! Pelo visto, temos menos amigos do que tu! – retorquiu o Rodrigues, sentindo-se em falta, devido aos comentários que fizera sobre a ajuda ao Zé Mouco.
      - Mesmo assim, acho que ainda não tenho os suficientes – deixou escapar Antero, sem qualquer ironia - como o mundo está, parece que isto já lá não vai, com cada um a puxar para o seu lado.
      - Parece que as mudanças, lá pelos Álamos, não se ficaram pelas obras – comentou o  João Matos, no seu tom pausado, mas incisivo.
Alexandre, que se mantivera calado até ao momento, resolveu opinar:
      - Sabe, quando se alargam as janelas, vê-se tudo mais claro. E, do nosso primeiro andar, demos conta que os palácios estão cada vez mais iluminados e os casebres cada vez mais às escuras. Isso é tão aberrante, que não pode ser bom para ninguém e, quando todos se derem conta disso, será bom que, por aqui, continuemos todos a poder trabalhar em paz.
Reinou um silêncio pesado. E fosse lá o que fosse, que esse silêncio quisesse dizer, a verdade é que, contra ventos e marés, naquele dia, a aldeia de Vale Formoso virou uma página da sua história.       


                                                                                                                ( continua )