Era um
domingo quente de fim de Junho. Em casa de Maria de Jesus tinha-se acabado de almoçar.
Na sala, de janelas semicerradas para evitar o faiscar do sol nas vidraças, havia
um silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa e augúrio de tarde de sesta,
para António, e de algum trabalho menor, por parte dos filhos que, em tempo de
estio, aproveitavam a sombra frondosa do arvoredo do quintal, junto ao tanque
de água fresca. Levada pelo torpor que se instalara à sua volta, Maria de Jesus
ainda deslizou os braços sobre a mesa, decidida a render-se à mornez do momento, mas, de repente, recompondo-se dessa letargia,
tão contrária à sua natureza, exclamou:
- Na próxima semana, vou a Lisboa!
- Vai aonde?! – perguntou, meio
estremunhado, o filho mais velho.
- Disseste alguma coisa? – quis confirmar
António, para ter a certeza que não estava a sonhar.
- É como lhes digo, há muito tempo que
não vejo as minhas irmãs e os meus sobrinhos e tenho lá uns assuntos a tratar.
E
levantou-se, em direção à cozinha, prometendo regressar com uma limonada bem
fresquinha. Os homens, entreolharam-se e encolheram os ombros. Estavam
habituados às suas decisões repentinas e sabiam que não valia a pena tentar
demovê-la. Além disso, estava, mesmo, muito calor.
As obras, que
se avizinhavam, trouxeram grande azáfama à Casa dos Álamos. Em breve, tudo
teria que estar a postos para a grande mudança. Maria Teresa mal cabia em si,
de contente. É verdade, que teve que ouvir as mil e uma recomendações da tia
Clotilde, e alguns remoques por parte dos irmãos, mas o que era isso, comparado
com o facto de, durante algum tempo, ter Alexandre portas adentro, cuidando de
assuntos da família? E a oportunidade não se fez esperar. O recado chegou com o
Sr. Rafael, o capataz da casa, que acabara de se cruzar com o António do
Cabeço. Este, também já se tinha acertado com os pedreiros e os materiais
seriam descarregados, no dia seguinte, antes do almoço. Como era seu hábito,
António tomou a seu cargo a supervisão de todo o trabalho e, tal foi a sua
exigência quanto à arrumação de tudo, no espaço disponível, que nem deu pela
hora de almoço, que já ia adiantada.
Foi o
Meireles que assomou à porta da cozinha e lembrou:
- Então, vocês, hoje, não almoçam?! O
trabalho pode esperar! Além disso, a Maria de Jesus já vos deve estar a rezar
pela pele! Já é tardíssimo!
Foi
Guilherme quem respondeu:
- Não se preocupe, Sr. Meireles, isto
está quase pronto e, quanto à minha mãe, ela está em Lisboa, só vem depois de
amanhã.
- A Maria de Jesus, em Lisboa?! Mas há,
por lá, algum azar? – inquiriu o pai de Maria Teresa entre surpreendido e preocupado.
- Acho que não, mas disse que tinha lá
uns assuntos a tratar. Está aqui está de volta e logo saberemos notícias.
Antero
Meireles ficou pensativo. Não se lembrava de Maria de Jesus alguma vez se ter
ausentado da aldeia. E logo para Lisboa, assim, sozinha, sem mais nem menos.
Alguma coisa tinha acontecido. Pensando melhor, lembrava-se de ela ter ido a
Lisboa com a família ao juramento de bandeira do filho mais velho, o Eduardo,
mas isso era diferente.
No dia
seguinte, Antero teve que se conter para não puxar logo a conversa sobre a
ausência de Maria de Jesus. A meio da manhã, contudo, enquanto desenrolava, com
Alexandre, uma corda que se tinha emaranhado, voltou ao assunto:
- Então, a tua mãe foi matar saudades de
Lisboa?!
- Não me parece! – respondeu Alexandre –
Ela anda preocupada com qualquer coisa. Já, na semana passada, fez uma visita
muito misteriosa ao Dr. Justino, na Vila de Cima, mas diz que são lá coisas
dela e não se descose.
- Será que ela se sente doente e não quer
que vocês saibam? - indagou Antero,
visivelmente intrigado– têm que estar de olho nela, porque ela é rija, mas não
é de ferro!
- Ela garante que não é nada com ela e,
de facto, se ela não se sentisse bem, o senhor acha que ia ao Dr. Justino? O
Dr. Justino já teve o seu tempo e não exerce medicina há muitos anos. Porque é
que ela lá iria?
- Sim, de facto…tens razão. Ele já nem as
gripes novas deve reconhecer.
A referência
ao Dr. Justino, contudo, fez tocar o sinal de alarme, na cabeça de António
Meireles. E o pânico instalou-se. No resto do dia, manteve-se calado e um pouco
alheio ao que se ia passando, por ali. O seu ar, apreensivo e ausente, levou
António a indagar:
- Se houver alguma coisa que não esteja a
contento, é só dizer! O Sr. Meireles é que manda!
- Ora essa, António! Para mandar, é
preciso perceber alguma coisa do assunto e não é o meu caso. Está tudo ótimo,
vocês é que sabem. Eu é que não acordei muito bem-disposto, deve ter sido
qualquer coisa que não me caiu bem ao jantar – desculpou-se o dono da casa,
aproveitando para pedir ao Miguel que fosse ao poço buscar as cervejas que lá
tinha colocado, logo pela manhã, dentro de uma cesta, para refrescarem. Era só
puxar a corda e, pronto.
A noite saiu-lhe
longa e enrodilhada de pesadelos e o seu estado de espírito também não
melhorou, no dia seguinte. A notícia do regresso de Maria de Jesus trouxe-lhe
algum ânimo. Precisava de falar com ela. Só não sabia como. Foi o Zé da Berta,
um dos pedreiros, que lhe deu a oportunidade:
- Com o calor que está, uma ida a Lisboa
também deve ser um bom petisco! Comboios cheios de gente e a pararem em todas as
estações. A Maria de Jesus deve vir pelos cabelos!
- Isso não é para a minha mãe. Mal chegou
a casa, já estava a dizer que, esta tarde, ia para o Vale da Lapa. E que só
contássemos com ela lá para o sol-posto. Nem perguntei o que é que ela ia
fazer. Já sabemos que, quando não tem que fazer, inventa - sublinhou Eduardo,
em tom condescendente.
Ora, aí
estava, uma boa ocasião para falar com ela. Não ia ser difícil provocar um
encontro acidental. Eram quase seis
horas, quando os homens despegaram do trabalho do dia. Mal eles viraram costas,
Antero mandou aparelhar uma das éguas e rumou à Lameira Redonda, a uns escassos
quinhentos metros da propriedade de Maria de Jesus. Para os da casa, avisou que
estaria de volta à hora de jantar. Da janela do primeiro andar, Maria Teresa
ainda o chamou para lhe perguntar onde é que ele ia àquela hora, mas, num
ápice, já Antero tinha esporeado a égua e desaparecido na esquina da latada.
(Continua)