quinta-feira, 18 de julho de 2013

A MADRINHA(5)

Era um domingo quente de fim de Junho. Em casa de Maria de Jesus tinha-se acabado de almoçar. Na sala, de janelas semicerradas para evitar o faiscar do sol nas vidraças, havia um silêncio recolhido e sonolento de manhã de missa e augúrio de tarde de sesta, para António, e de algum trabalho menor, por parte dos filhos que, em tempo de estio, aproveitavam a sombra frondosa do arvoredo do quintal, junto ao tanque de água fresca. Levada pelo torpor que se instalara à sua volta, Maria de Jesus ainda deslizou os braços sobre a mesa, decidida a render-se à mornez do  momento, mas, de repente, recompondo-se dessa letargia, tão contrária à sua natureza, exclamou:
      - Na próxima semana, vou a Lisboa!
      - Vai aonde?! – perguntou, meio estremunhado, o filho mais velho. 
      - Disseste alguma coisa? – quis confirmar António, para ter a certeza que não estava a sonhar.
      - É como lhes digo, há muito tempo que não vejo as minhas irmãs e os meus sobrinhos e tenho lá uns assuntos a tratar.
E levantou-se, em direção à cozinha, prometendo regressar com uma limonada bem fresquinha. Os homens, entreolharam-se e encolheram os ombros. Estavam habituados às suas decisões repentinas e sabiam que não valia a pena tentar demovê-la. Além disso, estava, mesmo, muito calor.

As obras, que se avizinhavam, trouxeram grande azáfama à Casa dos Álamos. Em breve, tudo teria que estar a postos para a grande mudança. Maria Teresa mal cabia em si, de contente. É verdade, que teve que ouvir as mil e uma recomendações da tia Clotilde, e alguns remoques por parte dos irmãos, mas o que era isso, comparado com o facto de, durante algum tempo, ter Alexandre portas adentro, cuidando de assuntos da família? E a oportunidade não se fez esperar. O recado chegou com o Sr. Rafael, o capataz da casa, que acabara de se cruzar com o António do Cabeço. Este, também já se tinha acertado com os pedreiros e os materiais seriam descarregados, no dia seguinte, antes do almoço. Como era seu hábito, António tomou a seu cargo a supervisão de todo o trabalho e, tal foi a sua exigência quanto à arrumação de tudo, no espaço disponível, que nem deu pela hora de almoço, que já ia adiantada.
Foi o Meireles que assomou à porta da cozinha e lembrou:
      - Então, vocês, hoje, não almoçam?! O trabalho pode esperar! Além disso, a Maria de Jesus já vos deve estar a rezar pela pele! Já é tardíssimo!
Foi Guilherme quem respondeu:
      - Não se preocupe, Sr. Meireles, isto está quase pronto e, quanto à minha mãe, ela está em Lisboa, só vem depois de amanhã.
      - A Maria de Jesus, em Lisboa?! Mas há, por lá, algum azar? – inquiriu o pai de Maria Teresa entre  surpreendido e preocupado.
      - Acho que não, mas disse que tinha lá uns assuntos a tratar. Está aqui está de volta e logo saberemos notícias.    
Antero Meireles ficou pensativo. Não se lembrava de Maria de Jesus alguma vez se ter ausentado da aldeia. E logo para Lisboa, assim, sozinha, sem mais nem menos. Alguma coisa tinha acontecido. Pensando melhor, lembrava-se de ela ter ido a Lisboa com a família ao juramento de bandeira do filho mais velho, o Eduardo, mas isso era diferente.

No dia seguinte, Antero teve que se conter para não puxar logo a conversa sobre a ausência de Maria de Jesus. A meio da manhã, contudo, enquanto desenrolava, com Alexandre, uma corda que se tinha emaranhado, voltou ao assunto:
      - Então, a tua mãe foi matar saudades de Lisboa?!
      - Não me parece! – respondeu Alexandre – Ela anda preocupada com qualquer coisa. Já, na semana passada, fez uma visita muito misteriosa ao Dr. Justino, na Vila de Cima, mas diz que são lá coisas dela e não se descose.
      - Será que ela se sente doente e não quer que vocês saibam? -  indagou Antero, visivelmente intrigado– têm que estar de olho nela, porque ela é rija, mas não é de ferro!
      - Ela garante que não é nada com ela e, de facto, se ela não se sentisse bem, o senhor acha que ia ao Dr. Justino? O Dr. Justino já teve o seu tempo e não exerce medicina há muitos anos. Porque é que ela lá iria?
      - Sim, de facto…tens razão. Ele já nem as gripes novas deve reconhecer.

A referência ao Dr. Justino, contudo, fez tocar o sinal de alarme, na cabeça de António Meireles. E o pânico instalou-se. No resto do dia, manteve-se calado e um pouco alheio ao que se ia passando, por ali. O seu ar, apreensivo e ausente, levou António a indagar:
      - Se houver alguma coisa que não esteja a contento, é só dizer! O Sr. Meireles é que manda!
      - Ora essa, António! Para mandar, é preciso perceber alguma coisa do assunto e não é o meu caso. Está tudo ótimo, vocês é que sabem. Eu é que não acordei muito bem-disposto, deve ter sido qualquer coisa que não me caiu bem ao jantar – desculpou-se o dono da casa, aproveitando para pedir ao Miguel que fosse ao poço buscar as cervejas que lá tinha colocado, logo pela manhã, dentro de uma cesta, para refrescarem. Era só puxar a corda e, pronto.
A noite saiu-lhe longa e enrodilhada de pesadelos e o seu estado de espírito também não melhorou, no dia seguinte. A notícia do regresso de Maria de Jesus trouxe-lhe algum ânimo. Precisava de falar com ela. Só não sabia como. Foi o Zé da Berta, um dos pedreiros, que lhe deu a oportunidade:
      - Com o calor que está, uma ida a Lisboa também deve ser um bom petisco! Comboios cheios de gente e a pararem em todas as estações. A Maria de Jesus deve vir pelos cabelos!
      - Isso não é para a minha mãe. Mal chegou a casa, já estava a dizer que, esta tarde, ia para o Vale da Lapa. E que só contássemos com ela lá para o sol-posto. Nem perguntei o que é que ela ia fazer. Já sabemos que, quando não tem que fazer, inventa - sublinhou Eduardo, em tom condescendente.
Ora, aí estava, uma boa ocasião para falar com ela. Não ia ser difícil provocar um encontro acidental. Eram quase seis horas, quando os homens despegaram do trabalho do dia. Mal eles viraram costas, Antero mandou aparelhar uma das éguas e rumou à Lameira Redonda, a uns escassos quinhentos metros da propriedade de Maria de Jesus. Para os da casa, avisou que estaria de volta à hora de jantar. Da janela do primeiro andar, Maria Teresa ainda o chamou para lhe perguntar onde é que ele ia àquela hora, mas, num ápice, já Antero tinha esporeado a égua e desaparecido na esquina da latada.
                                                                                                                       (Continua)

domingo, 14 de julho de 2013

A MADRINHA (4)

 Apesar da sua aparente boa disposição, Antero Meireles estava preocupado. Quando saiu do café, não foi direto para casa, como era seu costume. Em vez disso, dirigiu-se ao Roseiral, uma pequena horta na orla da aldeia que, na verdade, tinha muito pouco de horta e muito de jardim selvagem, sítio preferido de Maria Teresa e o mais longe a que esta se aventurava nas suas incursões pelo campo. Era um espaço onde se alternavam zonas soalheiras e sombrias, onde latadas e velhas trepadeiras se abraçavam e disputavam, pelo seu perfume e sombra, o imaginário de Maria Teresa que, de uma assentada, o tinha elevado à categoria de refúgio e de templo. Algures, em clareiras dispersas, cultivavam-se, sim, alguns produtos hortícolas, cuja existência servia para  justificar a intervenção quase diária de Miguel, um dos criados da casa, que, com o brio de quem recebe uma importante missão e faz questão de a cumprir, se esmerava para manter aquele espaço apetecível, durante todo o ano, quer chovesse quer fizesse sol.

Antero sentou-se na beira do grande tanque e viu a sua imagem refletida na água. Apressou-se a chapinhá-la para evitar associação de imagens. Ele sabia que recuar no tempo tem os seus perigos e pode conduzir a muitos equívocos: nunca se sabe se o que nos atormenta são as lembranças do que aconteceu ou as saudades do que poderia ter acontecido. Olhou em redor. Tudo, ali, lhe mostrava a verdade incontornável. Aquele, já não era o mundo de Maria Teresa. A menina-dos-seus-olhos tinha-se transformado numa mulher que – imagine-se! – estava apaixonada e, tudo isso,  mesmo debaixo das suas barbas, sem que ele se tivesse dado conta.

Não fosse a grande preocupação que sempre o acompanhara, relativamente ao historial dos partos das mulheres da família – tal como a mãe de Maria Teresa, também uma sua tia-avó falecera nas mesmas circunstâncias – e estaria, talvez, naquele momento, preocupado em unir conveniências, combinar fortunas, juntar iguais, em suma, a delinear estratégias para, com outra das famílias do seu meio aumentar a riqueza e o bem-estar dos descendentes de ambas. Mas não era o caso. A possibilidade de algo semelhante poder acontecer a Maria Teresa ocupava-lhe, de tal maneira, o pensamento, que não havia lugar para mais nada e, muito menos, para ninharias. E como se isso não bastasse, os rapazes, Carlos e Armando, também não se estavam a mostrar à altura do que esperava deles. Ambos eram trabalhadores e pessoas de bem, mas começava a ficar convencido de que tal se devia mais à mão de ferro com que ele geria a casa, do que à natureza da sua índole. Privados da disciplina da mãe, mimados pelas mulheres da família que disputavam, entre si, o seu afeto e simpatia, a sua educação carecia de preparação para enfrentar o mundo que nunca lhe tinha oferecido qualquer resistência. E Antero Meireles começava a temer pelo rumo que as coisas poderiam levar, no futuro. A ideia de ter Alexandre como genro, dava-lhe algum sossego: por um lado, Maria Teresa teria  Maria de Jesus por perto, o que seria uma boa influência e um recurso valioso; por outro lado, o exemplo de Alexandre talvez pusesse algum juízo na cabeça dos filhos. Que mais poderia desejar?

A reação dos filhos não se fez esperar. Sentados debaixo do alpendre que dava acesso à adega, pareciam embrenhados numa discussão séria, a julgar pelo seu ar circunspeto e pelo tom baixo da sua voz. De regresso a casa, o pai aproximou-se, deu as boas tardes e perguntou pela filha.
      - Está lá em cima, provavelmente a acabar o enxoval. Parece que vem aí casamento – respondeu Armando, o mais velho, em tom sarcástico. E acrescentou:
      - Francamente, pai, o que é que lhe passou pela cabeça?!
O pai, olhou-o, de alto-a-baixo e, calmamente, retorquiu:
      - Quando te levantares, para falares comigo, eu respondo-te. Não é que te deva grandes explicações, mas como já deves ter percebido, apanhaste-me num bom dia.
Armando levantou-se, não sem, antes, se ter desculpado. Carlos imitou-o.         
      - Eu digo-vos porque é que vejo, com bons olhos, o namoro da vossa irmã com o Alexandre. É porque, para além de achar que a vossa irmã merece ter uma verdadeira família, talvez vocês ainda estejam a tempo de aprender alguma coisa com o Alexandre. E olhem que não tenciono dar-vos segunda oportunidade. Estou a ficar farto das vossas atitudes de meninos mimados que esperam que tudo lhes seja servido de bandeja. Se eu fecho os olhos, tudo isto se desmorona como um castelo de cartas. O que é que vocês sabem fazer, realmente? Já repararam bem, no que aquela família tem construído, nos últimos anos? Porque estão juntos e puxam uns pelos outros. Vocês, só fazem o que lhes mandam!
E continuou:
      - Se não estivessem, hoje, à minha espera para me pedir satisfações, a esta hora, pela certa, andavam a pavonear-se pela aldeia, nas vossas lindas éguas, não para verem alguém, mas para serem vistos, com receio que alguma das pequenas da aldeia se esquecesse de sonhar convosco esta noite. Ah! Mas não se esquecendo de as olhar com o desdém de quem pensa – estamos aqui, mas não somos para o vosso bico! Pois, acabaram-se esses passeios, se quiserem andar a cavalo, vão para o campo, que esse é que é o local apropriado.
      - Mas o pai também não nos dá muita margem de manobra – balbuciou Carlos, um pouco a medo.
      - Descansem, que vão tê-la! Mas não se esqueçam: há coisas que Deus nos dá para aprendermos, há outras que só nos dá depois de termos aprendido. Espero que tenham ficado esclarecidos.

Maria de Jesus recebeu as notícias do encontro, sem grande surpresa. António ainda insistiu:
      - Mas o que é que te levou a crer que o Meireles não se ia opor ao namoro dos nossos filhos? Além disso, vai ter que se haver com a mãe e com as irmãs.
      - O Meireles é um homem muito esperto e sabe que não pode contar com os filhos para grande coisa. Além disso, sabe que a Maria Teresa fica bem entregue e deve estar farto de a ver, no meio de tanta barata tonta. Felizmente, a rapariga saiu à mãe, Deus a tenha em descanso.
      - Mas tu não pareces muito entusiasmada, anda por aí qualquer coisa que te está a preocupar – constatou  António, em tom  inquisitivo.
      - Eu gosto muito da Maria Teresa e estou feliz pelo Alexandre, mas há uma coisa que tenho que tirar a limpo. Logo que a carroça não faça falta na serração, preciso de ir à Vila de Cima falar com o Dr. Justino.
      - Mas o Dr. Justino está velho e já não exerce há muitos anos. Sentes-te doente? Há aquele médico novo, o  neto do Zé da Tocha!
         - Não, ninguém está doente. O que eu preciso é de saber de que é que o Dr. Justino se lembra. Recordo-me de ter conversado com ele, no dia em que tudo aconteceu, mas falham-me alguns pormenores e o Meireles bem precisa de algum sossego. Todos precisamos.  

                                                                                                                       (Continua)