Como profissional do ensino, assisti ao nascimento e ao
desaparecimento de muitas modas pedagógicas, a que os entendidos iam chamando novas
metodologias e, os supostamente não entendidos iam reconhecendo como as de
sempre, mas com outros nomes. Ali pelo meio houve, sim senhor, uma ou outra
exceção e, uma delas foi a chamada pedagogia de Trabalho Projeto. Para alguns,
constituía uma abordagem completamente nova, para outros, nem por isso, mas era
gratificante vermos, finalmente, reconhecido o nosso direito de pensar out of the box. Muito se disse, se
escreveu e se publicou sobre o assunto e as ações de formação proliferaram.
Pese, embora, o facto de eu sempre ter defendido que ninguém
forma ninguém e que cada um é o único responsável pela sua formação, pertenci,
por inerência de funções, ao grupo dos formadores. Discutia-se o novo conceito,
sugeria-se bibliografia, relatavam-se exemplos, levantavam-se questões,
trocavam-se ideias e, no final, lá vinha o trabalho prático de uma planificação
de um trabalho projeto. É verdade que faltavam ali elementos essenciais à
filosofia do supracitado trabalho como, por exemplo, o contributo dos restantes
intervenientes, nomeadamente dos alunos, mas…era o que se podia arranjar. Não
deixando de ser um simulacro, teria, certamente, algumas virtudes.
E chegou o grande dia. O grupo de formandos era um grupo
heterogéneo, formado por professores de todos os ciclos de ensino que, nessa
altura, também tinham outro nome. Dai que a diversidade dos produtos finais
fosse grande e, nalguns casos, surpreendente. Pois, surpresa das surpresas, o
primeiro trabalho a ser apresentado tinha como objetivo ensinar os meninos de
7-8 anos a apertarem os atacadores dos sapatos. Fiquei perplexa. Felizmente,
por essa altura, eu já conseguia contar até dez, antes de reagir. Ouvi tudo o
que havia para ouvir e pedi comentários. Os comentários saíram hesitantes,
desastrados, pontuais e cabia-me a mim ultrapassar algum embaraço que pairava
no ar. Louvei o que havia para louvar, mas questionei o objetivo do trabalho, a
sua significância pedagógica face ao papel da Escola na formação dos seus
educandos. Então, mas esse tipo de aprendizagem não era da responsabilidade da
família? O tempo reservado para o projeto não poderia ser utilizado numa
aprendizagem/interação que, efetivamente, fosse função da Escola fomentar?
Claro que não! A sua experiência, dizia a autora do trabalho, tinha-lhe
ensinado que a família tinha cada vez menos tempo para as crianças e era um facto
que os miúdos passavam a vida a cair, no recreio, por causa dos atacadores. Bem, contra factos não havia argumentos. Mas eu não sou mulher de
desistir. Então, e não seria de abordar esse assunto nas reuniões de pais,
sugerindo que dispensassem algum do seu tempo a ensinar os meninos a realizarem
essa tarefa? Nem pensar! Pela certa, alguns ainda lhe iriam responder mal.
Pronto, nada a fazer! Aquela, não era, decididamente, a minha praia.
Pronto, nada a fazer! Aquela, não era, decididamente, a minha praia.
Nos anos que se seguiram, várias vezes recordei este
episódio, entre amigos e colegas, e continuava a surpreender-me com o facto de
as opiniões se dividirem sempre, embora numa proporção que me dava algum
conforto. E se eu estivesse errada? Eu podia muito bem pertencer ao grupo
daqueles que estavam a ver mal a coisa. E, na minha cabeça, este assunto nunca
tinha ficado bem resolvido.
Hoje, finalmente, livrei-me do pesadelo. Mas eu conto. O dia
amanheceu soalheiro e sereno e, nos jardins e quintais da vizinhança, o suave
torpor matinal rapidamente se transformou em mil ruídos entrecortados de
conversas de vizinhos que, atarefados, se dividiam entre as várias atividades
que esses espaços, embora cada vez mais escassos, ainda proporcionam. De
repente, uma enorme discussão irrompe naquele ambiente quase idílico e, como
por magia, todos os ruídos se calaram. Na verdade, aquilo não era uma
discussão, uma vez que só o avô gritava e o neto, um garoto dos seus seis ou
sete anitos, chorava. E o choro ia subindo de tom à medida que o avô
acrescentava nova reprimenda a um rol que já ia bastante extenso. Faz favor de
beber o leite todo! Olha o que estás a fazer! Já entornaste leite nas calças!
És um desastrado! Sustive a respiração. É que num mundo ao contrário, até já
tenho medo de ouvir os meus próprios pensamentos, quanto mais fazer juízos de valor. Tentei
abstrair-me da cena. Mas, de repente:
__Olha bem para ti! Já viste bem essas sapatilhas? Tu ainda
não sabes apertar os atacadores? Eu sempre gostava de saber o que é que te
ensinam, na escola!
Pronto. Estava tudo esclarecido. Assunto encerrado.