A noite, por
ali, foi mal dormida. Quando, pela manhã, se encararam uns aos outros, ficou claro
que tinham uma preocupação comum: o Meireles. Tentando desviar a atenção do
assunto que a todos preocupava, a mãe dirigiu-se ao marido:
- Vou deixar a lista do que precisamos da
mercearia, em cima da mesa da cozinha. Preciso de ir ao Valado dar um jeito na
cerca que o gado rebentou, mas estou de volta antes do almoço.
- Não há pressa – respondeu António- Eu
só vou à aldeia, ao fim da tarde.
Alexandre,
que lavava umas ferramentas, no pequeno tanque do quintal, ouviu a conversa e
pensou para consigo:
- Vou ter que estar de olho nele. Se o
Meireles julga que eu vou permitir que ele o humilhe ou o desrespeite, está
muito enganado. O ricaço nem desconfia de com quem se está a meter.
O dia correu normalmente,
só perturbado por longos silêncios, pouco habituais. O irmão mais velho passou
a maior parte do tempo na forja e Alexandre, juntamente com o pai e o irmão
mais novo, ocuparam-se a ultimar uma encomenda, na serração. Por volta das
cinco da tarde, o pai deu por findo o trabalho e, virando-se para os filhos, disse:
- Bem, eu tenho um assunto para resolver.
O senhor Vilar vai cá mandar o boieiro, ao fim da tarde, buscar a madeira. O
que vocês têm a fazer, agora, é porem a madeira, além, a jeito de carregar.
Nenhum deles
fez perguntas, ambos sabiam de que se tratava.
Logo que o
pai voltou costas, Alexandre dirigiu-se à serração e disse ao irmão mais velho:
- Tenho umas coisas para resolver, no
povoado. Fazes favor, ajudas o Guilherme a carregar a madeira do Vilar. Eu não
me demoro.
- Não
sei se será boa ideia apareceres, por lá. O pai gosta de tratar dos assuntos
dele, sozinho.
- Pois, mas este assunto não é um assunto
dele, é meu.
O café,
contíguo à velha mercearia do Sr. Antunes, tinha já a marca das novas gerações
da família e tinha chegado com o rádio, o telefone e a carreira diária. Àquela
hora da tarde, porém, nenhum aldeão comum se podia contar entre a sua
clientela. Esta era constituída pelos homens abastados da terra que, deixando
aos capatazes a tarefa de supervisionarem os trabalhos nos campos, ali, se
juntavam para discutir jornas, preços para as safras do vinho, do azeite ou do
figo e – porque não? – as novidades das redondezas.
Nessa altura,
a novidade que fervilhava na aldeia, mas a que nenhum dos presentes podia dar
voz, por temer a reação do Meireles, era a inclinação de Maria Teresa e de
Alexandre um pelo outro. Querendo provocar alguma reação no pai da rapariga e
sem coragem para abordar o assunto, o Gouveia comentou:
- Ontem, fui à Ramada Grande e encontrei o
filho do Galvão Teles, em casa do meu cunhado. O rapaz já é quase doutor de
leis e o meu cunhado precisava de se aconselhar por causa de uma estrema. Diz
que está quase de férias e perguntou pelos teus rapazes e, pela Maria Teresa,
se está melhor da febre que a acometeu e se continua a ser a rapariga mais
bonita da terra. Lá lhe dei as notícias que, felizmente, são boas, e o rapaz
pareceu satisfeito.
- Ora, aí está, um belo par! E esse, não
podes dizer que vem à procura de riqueza, porque isso já ele tem de sobra – opinou
o João Matos, não escondendo a expectativa.
O Meireles
não se deu por achado, ignorou o que todos os presentes queriam saber e
comentou jocoso:
- Sabem o que lhes digo? Se nós já
precisamos dos conselhos dum jovem ainda de cueiros para resolver um caso de estremas,
estamos aviados. E virando-se para o neto do Antunes, que servia a cerveja,
perguntou:
- Ouve lá, aquela voz, que eu estou a
ouvir vinda da mercearia, não é a do António do Cabeço?
-
É, sim, senhor – respondeu o jovem
-
Então, diz-lhe se pode aqui chegar, que eu preciso de falar com ele.
O recado não
apressou António. Acabou de fazer as compras, arrumou-as no cesto, ainda deu
dois dedos de conversa com a Esmeralda, nora do Antunes, sobre a saúde da sogra
e, só depois, se dirigiu ao café. Quando assomou à porta, os copos ficaram
suspensos no ar, acompanhando um breve silêncio.
- Ó António, puxa uma cadeira e bebe aqui
um copo connosco – convidou o Meireles, como se fosse o dono da casa.
António tirou
o boné e aproximou-se, respeitoso. O resto do grupo não sabia o que pensar.
Seria que o Meireles ainda não sabia de nada? António interrompeu-lhes os
pensamentos:
- Se o Sr. Meireles pudesse ir logo
direto ao assunto, agradecia. É que ainda tenho uns afazeres, no Cabeço.
- Com certeza, António. Então, é o
seguinte: a minha cunhada Clotilde disse-me que a minha filha anda cismada em…
A conversa
foi interrompida por Alexandre que acabara de entrar, dar as boas tardes e
pedir um café.
- Alexandre?! O que é que tu estás aqui a
fazer? – perguntou, incrédulo, o pai.
- Porquê a admiração, pai? Que eu saiba,
não estou a invadir propriedade privada, ou estou?
António não
pode deixar de sentir algum embaraço, com a resposta do filho.
- Claro que não, mas fazia-te na serração
– respondeu
- Na serração está tudo em ordem. Vou ali
ao sapateiro, buscar umas botas, e já passo por aqui, para irmos juntos para
cima.
Já Alexandre
alcançava a porta, quando ouviu a voz do Meireles:
- Ó rapaz, ao menos, bebe uma cerveja
connosco!
- Obrigado, Sr. Meireles, mas eu não
bebo! – retorquiu Alexandre
- Não bebes?! Mas isso é um defeito
imperdoável, num homem!
- E aposto que esse nem sequer é o meu
pior, pois não, Sr. Meireles? E saiu, provocando algum desconcerto, no grupo.
Foi o
Rodrigues da Quinta de Cima que quebrou o silêncio:
- Ó António, este teu filho tem pelo na
venta!
Bem, como eu
ia dizendo …- atalhou o Meireles, apressadamente – a minha cunhada disse-me que
a minha filha anda cismada …fez uma pausa, sorveu o resto da cerveja e posou o
copo na mesa. Todos os presentes sustiveram a respiração.
- Vocês sabem como são as mulheres! Pois,
ela meteu na cabeça que quer construir uma estufa, na parte poente do jardim,
Diz que, em certas alturas do ano, aquela zona se torna muito quente e que
gostaria que a família pudesse aproveitar mais essa área.
Todos
respiraram fundo. Sobretudo António, a quem acabavam de tirar um peso das
costas.
E o Meireles
continuou:
- Queria saber se estão interessados no
trabalho, mas não se ponham com ideias, porque também já pedi um orçamento ao Abílio
Figueira e não quero gastar muito dinheiro!
- O senhor sabe que o Abílio Figueira trabalha
mais barato do que nós, por isso, é possível que não haja negócio.
- Eu sei, mas sou um homem prevenido.
Pela certa, a minha filha vai rejeitar a proposta do Abílio, sem sequer olhar
para ela. Por isso, é melhor não perdermos tempo – retorquiu o Meireles,
fazendo jus ao seu sentido prático.
- A menina Maria Teresa lá saberá o que
tem contra o Abílio Figueira, mas acho que os custos devem ser tomados em
consideração – opinou António.
- O problema não é o que ela tem contra o
Abílio – que não é nada – é o que ela tem a favor do Alexandre – contrapôs o
Meireles, impávido e sereno.
A estupefação
estampou-se no rosto de todos os presentes. Ainda mal recomposto, o Gouveia
gracejou:
- Cá para mim, a menina Maria Teresa está
é a ver se arranja um sítio bom para namorar, que o verão está a chegar e
parece que vai ser quente.
- É possível! As mulheres são muito
manhosas! Mas já que o trabalho é para se fazer, é melhor que seja feito por
uma das partes interessadas, sempre dá alguma garantia de que fica em condições!-
concluiu o Meireles, visivelmente bem-humorado.
As despedidas
saíram um pouco atabalhoadas e, contrariamente ao que era costume, de repente,
todos tinham algo de inadiável para fazer. É que, as novidades são três dias e
aquele já ia quase no fim, havia que aproveitar o tempo.
( Continua )