domingo, 8 de dezembro de 2013

A MADRINHA (11)

Tinham passado alguns meses sobre o casamento de Maria Teresa e todos pareciam satisfeitos com as mudanças que tinham tido lugar desde então. Não só os da casa, onde ninguém se sentia excluído das decisões e assumia a sua responsabilidade pessoal relativamente às mesmas, mas, sobretudo, os de fora, que começavam a aperceber-se que as relações de trabalho podiam ser diferentes, com vantagens para ambos os lados. Não tardou que Antero Meireles se tornasse o patrão mais cobiçado das imediações, obrigando os seus pares a seguirem-no nalgumas medidas. Por entre dúvidas e algumas inquietações, Antero foi dando ouvidos aos filhos e ao genro, que pareciam funcionar em perfeita sintonia, e não tardou a reconhecer que os jornaleiros trabalhavam com outro ânimo e estavam mais disponíveis para pequenos serviços extra que, por norma, fariam dentro do horário de trabalho. Porém, desengane-se quem julgar que a exigência e o rigor no cumprimento das tarefas tinham abrandado, pelo contrário, tudo era planeado ao detalhe e não havia lugar para qualquer tipo de desleixo.
      - Ó tia, não acha que o meu pai até parece mais novo, de há uns tempos para cá? – inquiriu Armando, enquanto observava o pai que remexia umas espigas de milho, avaliando-lhe o tamanho.
      - Pudera! Vocês tiraram-lhe um fardo pequeno dos ombros! E já não era sem tempo! O coitado, estava sozinho para tudo!
      - E acha que a culpa era só nossa?- perguntou Armando, sentindo uma pontinha de recriminação no desabafo da tia.
      - Claro que não! Mas o que lá vai, lá vai! Verdade seja dita: se não fosse o Alexandre, não sei se vocês se conseguiriam entender.
A conversa foi interrompida por Antero que, segundo informou, se tinha acabado de cruzar com a Maria de Jesus. Esta, levava um grande cabaz de verga e dissera-lhe que ia fazer uma visita à Maria Cuca.
      - Há algum problema com a Maria Cuca? – perguntou, aos presentes, adivinhando que, se Maria de Jesus tinha descido ao povoado, é porque alguém estava em apuros.
Foi Clotilde, sempre bem informada, que respondeu:
      - Parece que um dos garotos está doente. Ele sempre foi fraquito e, a fartura também não deve ser muita, para o tratarem como deve ser.
O cunhado ficou pensativo. Afinal, não conhecia assim tão bem a aldeia onde tinha nascido e vivido até àquele dia. Mas o que lhe fazia maior confusão é como é que a comadre, a Maria de Jesus, se apercebia daquelas situações e arranjava sempre maneira de ajudar.
 Nessa tarde, comunicou ao senhor Rafael, o capataz, que dissesse ao Zé da Cuca que precisava de falar com ele, no fim do trabalho.
Da janela do primeiro andar, Maria Teresa viu o irmão mais novo indicar ao homem o local onde o pai se encontrava, no jardim das traseiras. Curiosa, foi até à varanda e ficou a observá-los. Não eram usuais aqueles encontros com os jornaleiros, ao fim do dia, e muito menos naquele local recatado. O homem dirigiu-se ao patrão, de boné na mão e ar acanhado. Maria Teresa não conseguia ouvir o que diziam, mas era notório que, à medida que o pai ia falando, o homem parecia ir relaxando um pouco mais, até lhe parecer relativamente à-vontade. A sua grande surpresa foi quando viu o pai tirar, do bolso, dinheiro que já tinha separado, num pequeno rolo e lho meteu na mão. O homem pareceu perplexo e Maria Teresa não o ficou menos. A sua primeira reação foi um gesto de não poder aceitar, mas Antero pressionou-lhe o dinheiro na palma da mão, fechando-lha em seguida. Acompanhou este gesto com uma amistosa palmada nas costas, em jeito de despedida. Maria Teresa acompanhou o homem com o olhar, até ao portão, e teve a sensação de que ele limpava as lágrimas, num gesto disfarçado. Intrigada, desceu ao encontro do pai e perguntou:
      - Passa-se alguma coisa com o Zé da Cuca? Achei-o estranho.
      - Nada de especial. Coisas de trabalho. Fui eu que o mandei passar por cá.
      - Se não quer contar, não conte. E virou as costas, afastando-se, na esperança que o pai a detivesse e lhe contasse tudo. Mas não deteve. Decididamente, o pai estava a esconder-lhe algo.

O pequeno- almoço estava quase a acabar, quando o pai pediu que baixassem um bocadinho o rádio, porque queria a opinião de todos, sobre um assunto. Aí vem a chave do mistério- pensou Maria Teresa – mas, nem por isso, deu qualquer sinal de entusiasmo. Era bom que o pai percebesse que ela estava um bocadinho zangada com ele.
      - Estive a pensar que era bom que o Dr. Daniel não tivesse que sair cá da terra, mas, provavelmente, qualquer dia, quando o avô lhe faltar, também ele se vai embora, para onde possa ganhar mais dinheiro e fazer outro tipo de carreira. O que é que vocês acham da ideia de fazermos um ajuste com ele e ele, periodicamente, consultar e acompanhar os nossos trabalhadores e as suas famílias? É uma vergonha haver por aí gente que não pode consultar um médico ou tratar-se convenientemente. E, às vezes, são coisas insignificantes que acabam por se agravar.
Reinou um silêncio de espanto, mas, ao mesmo tempo, de emoção. Alexandre foi o primeiro a reagir:
      - Desculpem ser o primeiro a falar, mas isso dar-me-ia muita alegria e faria a alegria de muita família. Além disso, outros lhe seguiriam as pisadas e isso ajudaria o Dr. Daniel a fixar-se por aqui.
Todos se mostraram entusiasmados com a ideia, mas a tia Clotilde tinha uma objeção:
      - Isso já seria muito bom, mas alguns, coitados, também não têm dinheiro para os medicamentos.
      - Isso, depois se vê, também se arranja maneira de eles os pagarem como puderem, sem ser de uma só vez.
      - O pai não para de nos surpreender! – exclamou Armando, agradado.
Maria Teresa continuava calada. O pai resolveu confrontá-la:
      - Estás muito calada! Não te agrada a ideia?!
      - Ainda não decidi se lhe perdoo os segredinhos de ontem, ou não - respondeu a filha, numa pose sisuda que, como era seu costume, só conseguiu manter por breves segundos. E desatou a rir:
      - É claro, que agrada. Estamos, todos, muito orgulhosos de si.
Antero levantou-se da mesa e, sem dizer nada, dirigiu-se para a porta, numa atitude de quem dispensa companhia. Mergulhou na manhã cinzenta e deambulou sob o manto plúmbeo que cobria a aldeia. Deu por si a caminhar, sem rumo, e a reparar no silêncio e no vazio que pareciam pousados sobre todas as coisas. Fixou a vista, para melhor enxergar e, quando deu por si, estava no Roseiral. Mas o que é que ele estava ali a fazer, àquela hora da manhã, com tanto trabalho para ser feito e tanta coisa para resolver? Bem, já bastava de passeio matinal. O melhor era procurar o doutor Daniel quanto antes, não fosse algo ou alguém fazê-lo mudar de ideias.

A novidade espalhou-se pela aldeia como lume em estopa. Desta vez, foi o padeiro, que aproveitou a ronda da manhã para se certificar de que todos os seus fregueses tinham sido devidamente informados. Pena era, que nem todos fossem abrangidos pela benesse, mas cada coisa a seu tempo, garantia o Chico da Pinta – o padeiro - que, claro está, tinha a certeza que, mais dia, menos dia, todos os outros fazendeiros fariam o mesmo.
      - Deus o oiça, senhor Chico, que o meu João ainda me apanha alguma pneumonia devido a tanta constipação mal curada. Se ele fosse ao médico e à farmácia de cada vez que se constipa, deixava lá a jorna toda – comentou a D. Alzira, com um brilho esperançado no olhar.
      - Aquelas ideias, vindas lá do Cabeço, ainda nos levam todos à ruína – desabafou a tia Rita, acabadinha de chegar à Quinta do Freixo, no regresso de uma visita a uma amiga, na Vila de Cima. E o Antero que costumava ser um homem tão sensato!
      - E que falta de sensatez foi a dele, desta vez? – indagou a tia Júlia , ajudando-a a descer da charrete em que gostava de se transportar, neste tipo de visitas, pelas redondezas.
      - Imagina tu… - começou a tia Rita, um pouco ofegante pela emoção.
 Pelo começo, Júlia anteviu uma longa história e preparou-se para o pior.
      - Conta-me, depois, enquanto tomamos um chá. Parece-lhe bem?
A tia assentiu, com um gesto vago, de quem precisa tomar fôlego, para voltar à carga.

Contra todas as expetativas, desta vez, Antero não teve que lidar com qualquer tipo de confrontação vinda dos seus pares e, para surpresa de todos, uma semana mais tarde, a Professora Mercedes informava os pais dos alunos que, o Sr. Galvão Teles, da Ramada Grande, tinha acordado com o Dr. Daniel consultar, medicar e acompanhar todos os alunos que frequentavam a escola da aldeia. Isto, claro, se os pais não se opusessem.
      - Opor-se? Nós somos pobres, mas não somos mal- agradecidos! E se o Sr. Galvão Teles nos quer fazer esse favor, só temos de ficar satisfeitos! – desabafou a mãe da pequena Esmeralda, enquanto a professora a punha ao corrente da situação.
      -  Ora, até que enfim, os vejo competir por alguma coisa que valha a pena! – suspirou Maria de Jesus, pouco dada a comentários deste tipo, mas farta da exploração que grassava na aldeia e da miséria envergonhada de muitas famílias, a qual parecia invisível aos olhos dos abastados.
E, retomando a sua postura usual, disse para consigo:
      - O Dr. Daniel  e a professora Mercedes, vão precisar de ajuda com aquelas crianças todas, ainda por cima, enfrentando uma experiência nova que, de algum modo, as vai intimidar.
E, como era seu costume, em situações análogas, desceu ao povoado.

As ajudas e melhorias – como lhes chamavam os aldeãos; alguma justiça – no pensar  de Maria de Jesus – foram-se instalando na aldeia, para ficar, e a vida, ainda que continuasse dura por aquelas bandas, começava a apresentar alguns contornos bastante aceitáveis. Uma coisa era certa: fosse qual fosse a origem da benesse, todos sabiam que a deviam, em primeiro lugar, à Casa dos Álamos, pela mão de Alexandre e Maria Teresa, com a marca indelével de Maria de Jesus. Esta, representava um mundo inacessível para quase todos eles, um mundo de escolhas que eles nunca tinham compreendido, o poder de dizer “ não” que nenhum deles se atrevia a desejar para si próprio. Mas com Alexandre e Maria Teresa era diferente. Eles representavam o mundo tangível, organizado, expetável, em que cada um deles projetava os seus sonhos e anseios e a quem estavam agradecidos por os terem ajudado a mudar as suas vidas. Foi, pois, com grande euforia e expetativa que a notícia da gravidez de Maria Teresa foi acolhida. À mistura com alguma preocupação, a gente da aldeia desfiou os meses, aventou nomes para a criança, e alguns padrinhos começaram a perfilar-se no horizonte. Até que o grande dia chegou.


                                                                                                                                         (continua)