A vida na casa dos Álamos nunca mais foi a mesma, depois da
chegada de Alexandre. O que fora entendido como algo que afetaria só a vida de
Maria Teresa vinha, agora, à luz, como uma mudança radical pronta a abalar toda
a estrutura da família e dos papéis que, cada um, nela desempenhava. A tia
Clotilde, cujo avental era um atributo de poder e lhe conferia um estatuto quase
obscuro, por demais aceite pelos homens da casa, foi a primeira a ser atingida:
- Bem, tia, já
passou uma semana, já não há sobras da boda, é altura de cada um tratar da sua
vida. A partir de amanhã, eu própria prepararei as refeições para mim e para o
Alexandre. Entretanto, aqui, no rés-do-chão, tudo ficará como dantes. E vamos
estar todos juntos, sempre que quisermos.
A tia não respondeu. Pousou a colher com que provava o
ensopado de borrego para o jantar e procurou a cadeira mais próxima. Ia a dizer
qualquer coisa, mas limitou-se a abrir e fechar a boca, de espanto. Valeu-lhe a
governanta que veio, em seu auxílio, com um copo de água com açúcar. Ia fazer-lhe
bem e não valia a pena ficar assim, afinal de contas, continuavam todos juntos,
paredes-meias. Mas a tia não se conformava. E foi assim, num pranto, que o
cunhado a veio encontrar, no regresso da sua reunião com os amigos, no café do
Antunes:
- Mas o que é
que aconteceu? Que pranto é esse?- perguntou surpreso.
- Nada de
especial – respondeu Clotilde, em tom sarcástico – é só a tua filha que já não
quer tomar as refeições connosco e que parece que não quer nada com o
rés-do-chão desta casa.
- Que exagero! –
atalhou a governanta – receando uma reação semelhante da parte do pai de Maria Teresa.
- Exagero?! Mas
tu não ouviste o mesmo que eu ouvi?! – perguntou a tia, indignada.
- Claro que não!
E se o senhor Meireles cá estivesse, também não teria ouvido. Não foi nada
disso que a menina quis dizer.
- Bem, estou a
ver que o melhor que tenho a fazer é falar com a Maria Teresa. E subiu ao
primeiro andar, onde a filha preparava os legumes para a sopa do dia seguinte.
Maria Teresa pô-lo ao corrente do que pensava fazer e
pediu-lhe, encarecidamente, que a apoiasse nessa ideia. Era o melhor para
todos. Seria um mau começo, aquela dependência total do patriarca da família e
não lhe parecia que o Alexandre se sentisse muito feliz com isso. Afinal, para
que teriam servido todas aquelas obras? Para continuarem todos como se nada
tivesse acontecido? Além disso, tinha a certeza que o Alexandre continuaria a
apoiar os pais e a ajudá-los, quando fosse preciso. Ele não tinha sido comprado
por ninguém.
À medida que a filha ia falando, Antero sentia avolumar-se o
medo de ter perdido a filha tal como a conhecera até ali, mas, ao mesmo tempo a
voz da razão segredava-lhe que aquilo fazia todo o sentido e que a sua situação,
na casa, deveria ser repensada. De repente, inundou-o uma sensação de
mal-estar. E os outros dois filhos? Seria que eles também sentiam aquele desejo
de se livrarem do jugo do “velho patriarca”? Assolou-o um aperto, no coração. E
as criticas que lhes tecia não seriam um pouco injustas, por não terem a tal “
margem de manobra” de que, há uns tempos atrás, lhe tinham falado? E desceu,
cabisbaixo e pensativo.
- Estás a ver
como eu tinha razão? – perguntou a cunhada,
ao vê-lo naquele estado – também ficaste surpreendido, não é
verdade?
- Sim, mas não
pelas mesmas razões que tu. Fiquei surpreendido com o discernimento da Maria
Teresa. Afinal, acho que apesar de ter sido criada sem mãe, fizemos um bom
trabalho com ela. Melhor do que com os irmãos! Mas nunca é tarde…
Clotilde franziu o sobrolho. O que é que ele quereria dizer
com aquilo? Mas, para dizer a verdade, também não lhe apetecia falar mais
daquele assunto. Já tinha que chegasse para o resto do dia.
O jantar decorreu mortiço, sem os risos e as picardias
habituais entre Maria Teresa e os irmãos, frequentemente aquietadas ou
exacerbadas pelo pai ou pela tia. Quando se preparavam para abandonar a mesa,
Antero dirigiu-se ao Alexandre:
- Gostava de te
dar uma palavrinha ali, no escritório. Importas-te de me acompanhar?
Alexandre hesitou, por um momento. Em seguida, perscrutou os
cunhados e perguntou:
- Tem a certeza
que não é nada que possamos tratar aqui?
- Claro! Claro,
que pode – respondeu Antero, pouco à vontade, voltando a sentar-se.
Os outros seguiram-lhe o exemplo.
- Parece que
vocês têm planos diferentes dos meus, para a vossa vida- começou Antero, dirigindo-se à filha e ao genro. Se
calhar já devíamos ter falado nisso, mas pensei que podia contar com o
Alexandre para me ajudar a levar a casa para a frente e modernizar algumas
coisas por aí, mas pelo visto, querem seguir a máxima “casamento,
apartamento.” E estou sozinho, outra vez!
- Peço imensa
desculpa- interrompeu Alexandre- mas o senhor não está, nem nunca estará
sozinho. O que eu e a Maria Teresa queremos é que o senhor possa contar
igualmente com todos nós. Eu não quero nenhum estatuto diferente do dos seus
filhos. Tenho conversado muito com eles e aposto que o senhor ficaria muito
surpreendido se os ouvisse e lhes desse alguma credibilidade.
- Pelo visto, não perdes tempo! Ainda agora chegaste e já estás do lado deles! – exclamou
Antero, com algum desalento.
A estas palavras, Maria Teresa reagiu, com alguma veemência:
- Ó pai, o pai
não está a dizer que gostaria que o Alexandre estivesse contra os meus irmãos,
pois não? E também não está a dizer que os meus irmãos estão contra si, ou
estará? Mas afinal, o pai quer a família unida ou separada?
Perante o silêncio do pai, Maria Teresa parecia disposta a
continuar, mas foi interrompida por Armando, que entretanto se tinha levantado
da mesa, seguido do irmão, passou por trás dela e, colocando-lhe a mão no
ombro, disse:
- Deixa, mana,
trata da tua vida e não te preocupes connosco.
Aparentemente recomposto do efeito das palavras de Maria
Teresa, Antero dirigiu-se aos filhos:
- Mas aonde é
que vocês vão? Não têm nada para dizer?
- E vale a pena
dizer alguma coisa? – retorquiu Carlos, continuando em direção à porta.
- Já agora
gostava de saber a vossa opinião, já que, hoje, parece que toda a gente tem
contas a ajustar comigo. Ao menos, desembuchem todos, de uma vez!
- Pois, então,
vou dizer-lhe o que penso- começou Carlos, retrocedendo alguns passos – acho
que se quer o Alexandre a trabalhar consigo, deve pagar-lhe um salário que lhes
permita organizarem a vida deles como eles quiserem e, sim, acho muito bem que
tomem as decisões deles sozinhos, sem terem que se sujeitar às regras, nem aos
horários da família. De contrário, não tardará que seja o pai a determinar
quando é que ele precisa de trocar de botas.
- Já acabaste? –
perguntou Antero, aparentemente mais calmo. Fez uma pequena pausa e continuou:
- Dizem que a noite é boa conselheira e estamos todos a precisar de dormir sobre tudo isto. E virando-se para Clotilde:
- Dizem que a noite é boa conselheira e estamos todos a precisar de dormir sobre tudo isto. E virando-se para Clotilde:
- E tu?! Não
dizes nada? Se tiveres alguma reclamação a fazer, aproveita agora, que estamos
em maré de protesto...
- Eu…eu… -
balbuciou a cunhada - gostava que continuássemos a tomar o pequeno-almoço
juntos!
- Claro que sim,
respondeu Maria Teresa, seguida dos restantes membros da família. Nós íamos lá
perder os seus mimos matinais! E, a propósito, quando é que voltamos a ter
aquele bolo de mel de que tanto gostamos?
- Amanhã mesmo,
fica prometido! – respondeu a tia, recuperando o alento perdido e devolvendo-se
aos seus afazeres .
Na manhã seguinte, lá estava o bolo de mel, acabado de fazer
e a perfumar toda a cozinha, a maior possessão do território da tia Clotilde.
Mas Antero, não estava. Segundo o capataz, tinha saído cedo, a cavalo, e ainda
não voltara. Era a primeira vez que tal acontecia e todos os presentes se inclinavam
já para uma atitude de retaliação, por parte de Antero, quando este entra
apressado, desculpando-se pelo atraso e comentando, bem- disposto:
- E logo hoje,
que me arriscava a ficar sem bolo!
E, mudando de assunto:
- Temos que
falar sobre o olival das Estevas. Depois da safra, se calhar o que deveríamos
fazer era arrancar aquelas oliveiras e substituí-las por oliveiras novas e de
outra espécie. Querem lá ir, dar uma vista de olhos?
- O primeiro a
responder foi Armando:
- Se o pai
quiser, podemos acompanhá-lo, mas não precisamos de lá ir, para vermos o que já
devia ter sido feito há muito tempo. Essa colheita tem-nos saído muito cara e essa
azeitona funde muito mal. Esse olival é, de facto, o pior, mas,
progressivamente, deviam ser todos replantados.
- Acabavam por
se ir pagando uns aos outros- acrescentou Carlos, com ar de entendido, para
grande surpresa do pai.
- E tu,
Alexandre, o que é que achas de tudo isto?
- Concordo com
os seus filhos. Além disso, qualquer dia vem por aí a mecanização e é bom que
não lhe barremos o caminho.
- Bem, então
parece que estamos todos de acordo! – rematou Antero, com algum alívio.
- E porque é que
não deveriam estar, perguntou Maria Teresa, trocando com a tia um olhar
cúmplice.
A conversa selou um recomeço na Casa dos Álamos. E, com grande
surpresa, a aldeia foi-se habituando a um Antero Meireles quase sempre
acompanhado dos filhos e do genro, não só em situações de trabalho, como de
lazer, como era o caso dos encontros de fim-de-tarde, no café da aldeia. A
princípio, os seus pares mostraram-se um pouco constrangidos, porque alguns dos
assuntos em discussão tinham sido, até ali, prerrogativa dos chefes de família,
mas rapidamente perceberam que tinham de se habituar a torna-los extensivos
aos novos parceiros de negócios. E, a pouco e pouco, cada um deles foi trazendo
também os filhos ou os genros a esses encontros, transformando-os em algo de
diferente, que começava a agradar a todos. Havia naqueles encontros de gerações
uma promessa velada de continuidade que não deixava de os sossegar.
- Isso são coisas do Alexandre – diziam
uns.
- Eu diria que
são coisas da Maria de Jesus, que sabe muito bem como dar a volta às coisas –
diziam outros.
- Seja como for,
assim é que deve ser! - comentavam os jornaleiros, a quem ninguém pedia
opinião, mas que, nem por isso, deixavam de a dar.
Mas as maiores mudanças ainda estavam para vir. Quase no fim
da safra do azeite, Maria de Jesus, apercebeu-se que a azeitona do pequeno
olival do Zé Mouco, que lhe assegurava o azeite para o sustento da família,
ainda estava por apanhar, devido à doença prolongada da mulher. Todos anos, o
marido tirava um dia ou dois ao trabalho que prestava por conta do Meireles e,
juntamente com a mulher e a filha, apanhavam a azeitona. Nesse ano, com a
mulher doente, a filha a ter de cuidar dela e ele a não poder prescindir da
jorna devido às enormes despesas que a doença dela lhe acarretava, a azeitona
lá estava, por apanhar. Maria de Jesus falou com os filhos:
- Falei com
algumas mulheres que não se importam de ajudar a apanhar a azeitona do Mouco,
mas precisamos de um homem ou dois para a varejar. Entre vocês, quem é que está
disponível para ajudar?
- O problema é
que, esta semana, temos uma encomenda grande para entregar – disse o Guilherme,
corroborado pelo pai.
- Não é preciso,
eu e o Eduardo vamos lá, só tenho que avisar o meu sogro - comprometeu-se
Alexandre e assim fez.
- A azeitona do
Zé Mouco? A tua mãe tem a certeza que ela está por apanhar? – indagou o sogro,
algo surpreendido.
- Claro que tem!
O senhor sabe como é a minha mãe, não se mete na vida de ninguém, mas está
sempre atenta a estas coisas – confirmou Alexandre.
- A quem o
dizes!... Pois vamos fazer assim: amanhã, acaba-se a apanha na Cabeça Alta e,
antes de se mudar para outro olival, leva-se o rancho ao olival do Mouco e
aquilo apanha-se que é um instante. Diz à tua mãe que esteja descansada que não
é preciso cá ninguém a ajudar, nós tratamos disso.
Mas… o Mouco também faz parte do rancho. Ele nem vai
acreditar! – retorquiu Alexandre, com alguma dificuldade em, ele próprio,
acreditar no que estava a ouvir.
- Ainda bem,
porque assim poupa-me o capataz. Têm lá o dono do olival, para tomar conta do
trabalho.
Quem não gostou muito desta atitude do Meireles foram os
outros fazendeiros que, nas suas reuniões habituais, não se coibiram de o
alertar para os perigos dessas familiaridades.
- Ó Meireles,
não achas que exageraste um bocadinho?! Não achas que estás a amolecer um
bocado, com essa gente? Qualquer dia, não tens mão neles! Se a moda pega, não
tens mãos a medir! – advertiu o Rodrigues, da Quinta de Cima.
- Isso preocupa-me
pouco. E, sabes uma coisa? Há muito tempo que não dormia uma noite descansada,
como nessa noite. É capaz de ser um bom remédio para as insónias!
E a conversa ficou por ali.
Mas o destino gosta sempre de ter a última palavra e, desta vez,
fez mesmo questão de se pôr do lado do Meireles.
Tinham passado alguns meses e chegara o tempo das vindimas.
Depois de toda a azáfama da preparação das adegas, chegara a vez dos cachos
dourados, destinados à secagem, reluzirem nos passadouros, sob o olhar vigilante
dos capatazes que, ao menor sinal de mudança de tempo, organizavam a sua
recolha apressada para debaixo dos respetivos telheiros. Pois, num desses
fins-de-semana de verão, em que nada faria prever qualquer mudança de tempo,
dois acontecimentos se vêm a conjugar para que a aldeia ficasse quase deserta e
os passadouros à mercê do acaso. Por um lado, tinha tido lugar, numa aldeia
bastante afastada dali, a primeira missa celebrada por um filho da D. Fernanda
Gouveia, recém – viúva, e que todos os seus pares tinham feito questão de
acompanhar naquele ato simbólico, ao qual se seguiu um almoço demorado; por
outro lado, tinha lugar a festa anual em honra de Santa Eufémia cujas
celebrações religiosas tinham decorrido com toda a normalidade, debaixo de um
calor ardente, mas cujo recinto, destinado aos festejos pagãos, se situava em
campo aberto a cerca de 1,5 km da aldeia. Com o chegar da noite, as luzes, o
barulho e a alguma euforia, poucos foram os que se aperceberam que as condições
meteorológicas se tinham alterado completamente e só quando o vento se
levantou, em fúria, e a chuva começou a cair, em catadupa, é que a população se
apercebeu que a única coisa que poderia fazer era tentar pôr-se a salvo da
intempérie.
O Zé Mouco, cuja mulher continuava doente e que tinha ficado
em casa a fazer-lhe companhia, enquanto a filha ia até à festa com as amigas,
apercebeu-se da mudança de tempo e, sabendo que a família do patrão estava toda
ausente, dirigiu-se ao passadouro com um vizinho. Maria de Jesus, sem nenhum
dos homens em casa, tinha-se socorrido de um garoto que encontrara no caminho e
também tinha acabado de chegar. Os quatro conseguiram pôr a salvo toda a
produção das uvas destinadas à secagem. Quando o capataz chegou, encharcado até
aos ossos, encontrou-os acoitados sob o telheiro, em amena cavaqueira, à espera
que a chuva passasse. Aliviado, não pode deixar de exclamar:
- Nem imaginam
como o senhor Meireles vos vai ficar agradecido! Ele detesta ver coisas
estragadas!
- Não é preciso
agradecer. A vida dá-nos sempre a oportunidade de retribuirmos favores, não
achas, Zé? – perguntou Maria de Jesus sem , contudo, esperar qualquer resposta.
Os atos falavam por si.
Quando se voltaram a encontrar, no café da aldeia, nenhum
dos amigos mencionou o acontecido. Foi o Meireles quem puxou a conversa.
- Então, o
prejuízo com as uvas foi grande?
- Claro, que
foi! Pelo visto, temos menos amigos do que tu! – retorquiu o Rodrigues, sentindo-se
em falta, devido aos comentários que fizera sobre a ajuda ao Zé Mouco.
- Mesmo assim,
acho que ainda não tenho os suficientes – deixou escapar Antero, sem qualquer
ironia - como o mundo está, parece que isto já lá não vai, com cada um a puxar
para o seu lado.
- Parece que as
mudanças, lá pelos Álamos, não se ficaram pelas obras – comentou o João Matos, no seu tom pausado, mas incisivo.
Alexandre, que se mantivera calado até ao momento, resolveu
opinar:
- Sabe, quando
se alargam as janelas, vê-se tudo mais claro. E, do nosso primeiro andar, demos
conta que os palácios estão cada vez mais iluminados e os casebres cada vez
mais às escuras. Isso é tão aberrante, que não pode ser bom para ninguém e,
quando todos se derem conta disso, será bom que, por aqui, continuemos todos a poder
trabalhar em paz.
Reinou um silêncio pesado. E fosse lá o que fosse, que esse
silêncio quisesse dizer, a verdade é que, contra ventos e marés, naquele dia, a
aldeia de Vale Formoso virou uma página da sua história.
( continua )
De quando em quando volto à idade do retorno." A madrinha 10" já veio a público há bastante tempo. "Virou uma página da sua história"...por isso, a história não pode ter ficado por aqui.
ResponderEliminarIsto é como nos filmes, só acaba quando aparecer a palavra "FIM". É tudo uma questão de tempo...
ResponderEliminarBoa resposta. Aguardemos, então.
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