A estrada seguida por Antero Meireles bifurcava a cerca de 1
Km do perímetro da aldeia e era aí que o seu caminho divergia do de Maria de
Jesus. Virou à direita, para a Lameira Redonda. Já agora, aproveitava para verificar
em que fase estava a limpeza das árvores do pomar a qual, a julgar pelo tempo
lá despendido por três dos seus homens, deveria aproximar-se do final. Uma vez
chegado, percorreu, apressadamente, o vasto laranjal calado como lápide,
calculou mais um dia de trabalho e encetou o caminho de regresso. Às suas
ordens, a montada seguiu a passo até ao Alto da Sobreira, onde uma imponente sobreira
centenária sobressaia de um pequeno tufo de outros sobros mais novos, cujos
troncos nus, recentemente descascados, quais Fénix da flora, marcavam presença
forte na tonalidade do conjunto. A discordar, pela singularidade, mas
emprestando-lhe uma beleza única, duas cevadilhas de porte mediano, em rosa e
branco, entrelaçavam-se uma na outra, disputando com os vizinhos a atenção dos
transeuntes. Antero apeou-se e prendeu a égua a uma delas. Procurou um pequeno
monte de pedras e sentou-se. Dali, poderia ver Maria de Jesus aproximar-se, sem
ser visto. Absorto, fitou a linha do horizonte e o seu pesadelo voltou.
De repente, um leve relinchar da égua fê-lo voltar-se na sua
direção. Esta levantava a cabeça e preparava-se para abocanhar um pequeno ramo
que lhe roçava o pescoço. Antero levantou-se, de um salto. Santo Deus! Mas onde
é que ele estava com a cabeça, para ter prendido o animal a uma árvore traiçoeira
como aquela? Pois, não tinha sido ele que tinha mandado arrancar todas as
cevadilhas plantadas junto aos estábulos e currais, quando se mudou para a Casa
dos Álamos? Estas constantes brechas no seu estado de alerta começavam a
preocupá-lo. Tinha mesmo que falar com a Maria de Jesus.
O sol acabava de se pôr, quando a mãe de Alexandre apareceu
na curva da estrada. À cabeça, carregava uma cesta de vime donde sobressaia uma
folhagem que, à distância, Antero não conseguiu identificar. Na mão, segurava
um pequeno sacho e caminhava ligeira, como era seu hábito. O pai de Maria
Teresa deu-lhe algum avanço e só depois de ela entrar na estrada principal é
que estugou o animal, de modo a alcançá-la, ainda fora da aldeia.
- Boa tarde,
Maria de Jesus! Parece que vais apanhar o comboio! – cumprimentou, apeando-se.
Maria de Jesus parou. Pousou a cesta no pequeno muro de
pedra que ladeava a estrada e retribuiu o cumprimento:
- Boa tarde! Não,
já tenho comboio que chegue por uns tempos! Daqui a pouco são é horas de jantar
e os meus homens são fracos cozinheiros.
- Ah, pois,
ouvi-os dizer que tinhas ido fazer uma visita à capital, mas também referiram
uma ida ao médico. Estás com algum problema de saúde? Pareces-me bem -
acrescentou Antero.
- E estou. Eles
é que me saíram uns grandes linguareiros - ripostou Maria de Jesus, tentando
mudar o rumo da conversa. Apontou o cesto dos figos lampos e ofereceu:
- É servido?
Estão fresquinhos. Apanhei-os cedo e têm estado dentro da casa de pedra.
Não percebo porque não me tratas por tu. Somos praticamente da mesma idade – fez notar Antero tirando um
figo do cesto.
- Porque nunca
tratei e não é agora que vou começar. Está muito bem, assim – respondeu Maria
de Jesus, assertiva.
Antero pareceu pouco à- vontade. Pegou num figo e comentou,
enquanto o comia:
- Este ano, a
minha filha está farta de reclamar. Deixei secar duas das nossas melhores
figueiras lampas e as outras não deram grande coisa. Diz que eu só cuido das
coisas que me dão lucro e como os figos lampos não são para vender…
- E isso é
verdade? – perguntou Maria de Jesus, encarando-o.
Antero Meireles reagiu, mostrando algum desconcerto:
- Claro que não!
Isso são ideias dela!
- Então, tens de plantar novas figueiras e provar-lhe que está errada.
- Esse desejo é
fácil de satisfazer. O pior é o que não está ao meu alcance – balbuciou Antero
com voz trémula e um brilho aguado no olhar.
- De que é que
estás a falar? Há algum problema com a Maria Teresa? – perguntou a mãe de
Alexandre, imaginando a resposta.
- Não sei se há,
mas poderá haver, não te parece? – inquiriu Antero, com algum desalento. E
continuou:
Até ao momento, não tinha pensado muito nisso porque, para
mim, a Maria Teresa era uma criança crescida que, felizmente, não me dava
problemas. Mas agora, da noite para o dia, dou de caras com uma mulher que,
legitimamente, tem um namorado e pensa, com certeza, casar e ter filhos e isso veio
acabar com o meu sossego.
Com um sorriso calmo, Maria de Jesus interrompeu-lhe o
desabafo, com um leve gracejo:
- Credo, homem!
Daqui a pouco está a dizer-me que está preocupado com a ida dos netos para a
tropa! Deixe o tempo fazer o seu trabalho, que todos nós havemos de fazer o
nosso!
- Mas tu sabes o
que aconteceu à minha mulher e à irmã mais velha. Acho que dois casos, na mesma
família, são motivo para grande preocupação. Eu nem quero pensar no que seria,
se acontecesse alguma coisa à minha filha -
respondeu Antero.
- Não há de
acontecer nada, se Deus quiser! Lembre-se que os partos dos seus rapazes
correram normalmente. Além disso, as coisas mudaram muito nestes últimos anos e
quase tudo pode ser previsto e evitado. Basta um bom acompanhamento médico e ter-se
em atenção a história da família, embora, neste caso, as duas histórias não
tenham nada a ver uma com a outra – disse Maria de Jesus, com alguma hesitação.
- Não têm? Como
é que sabes? A única pessoa que poderia esclarecer tudo isso, está incapacitado
de o fazer já há alguns anos e não há volta a dar. O Dr. Daniel diz que está
tudo bem com a Maria Teresa, mas gostaria de saber, exatamente, o que aconteceu
em ambos os casos, mas ninguém, na família, sabe ao certo. Há muitas versões
diferentes dos factos e a Tia Josefa , a parteira, há muito que não está entre
nós – lamentou Antero, em voz fraca.
- Refere-se ao Dr. Justino, não é verdade? –
perguntou Maria de Jesus. E acrescentou:
- O senhor não
deve estar lembrado, mas eu estive em sua casa, no dia do nascimento da Maria Teresa,
aliás, devo ter sido das primeiras pessoas a pegar-lhe ao colo, porque a
família estava toda completamente desorientada. Como sabe, o Dr. Justino não
era um simples médico de aldeia, também estava bem informado e bem relacionado
em Lisboa. Troquei algumas palavras com ele sobre o acontecido e fiquei a saber
que ele fazia registos detalhados de todas as situações que considerava
relevantes para a história clínica das famílias com quem privava e lembro-me de
ele me ter dito, nessa altura, que a situação da sua cunhada tinha sido
completamente diferente. No caso desta última, a probabilidade de
sobrevivência, tanto dela, como do filho, seria sempre mínima, mas, no caso da
sua esposa, tinha sido um caso típico da parteira que, devido à sua longa
experiência acha, até à última hora, que dá conta do recado e, só tardiamente,
alerta a família para a necessidade da presença do médico.
- Lembro-me
perfeitamente de te ver falar com o médico nesse dia, por isso é que me lembrei
de falar contigo, podia ser que te lembrasses de alguma coisa que nos pudesse
ser útil –retorquiu Antero.
- De facto, eu
imaginei que, mais dia, menos dia, todos vocês começassem a ficar preocupados
com o assunto e foi por isso que fui visitar o Dr. Justino.
- E ele
reconheceu-te? Está lúcido? Lembra-se de alguma coisa? –perguntou Antero, em
catadupa, tentando dar vazão à sua ansiedade.
- Claro que não!
Mas também não era isso que eu esperava. Eu só queria confirmar a existência
desses registos e mostrá-los a alguém entendido no assunto, para ter a certeza
que a minha memória não me tinha atraiçoado.
- E daí, a tua
ida a Lisboa! – aventou Antero, mostrando um alívio ainda receoso.
- É verdade – confirmou
Maria de Jesus - a irmã do doutor autorizou-me a copiar toda a informação que
havia sobre os dois casos e eu levei-a à minha sobrinha Isilda que é
enfermeira- chefe na Clínica de Santa Helena. Por sua vez, ela discutiu o
assunto com os médicos da especialidade e garantiu-me que, neste momento, um
caso daqueles seria muitíssimo improvável que acontecesse, desde que houvesse um
acompanhamento médico normal e se tomassem providências básicas. Mesmo a situação da tua cunhada, hoje está perfeitamente identificada e, sabendo-se que há esse antecedente na família, é só redobrar os cuidados.
- Nem imaginas o
peso que me tiraste dos ombros! Tu és, realmente, uma pessoa muito especial!
Quem me dera que a minha filha tivesse sido criada por alguém como tu! Não é
que a Clotilde não lhe seja dedicada e não a trate como uma filha, mas tem
pouco golpe de asa e tem uma natureza muito contrária à da Maria Teresa. A
minha irmã Júlia ainda se ofereceu para se encarregar dela, mas, sabes como é, a Clotilde além de tia era também madrinha do
batismo e, por aqui, a lei de Deus ainda se sobrepõe à lei dos homens.
- Bem, tenho
que ir andando – disse Maria de Jesus – mas, antes, queria pedir-lhe que esta
conversa fique só entre nós. Quando achar oportuno passar essa informação à
Maria Teresa ou a outros membros da família, faça-o como sendo resultado de
indagação sua. Quanto aos registos, eu fá-los-ei chegar às suas mãos. É que eu
gosto pouco de pôr o carro à frente dos bois. Teria feito as mesmas
diligências, por qualquer outra pessoa e em qualquer outra circunstância. Não
tem nada a ver com o Alexandre. Ele não sabe de nada, nem tem de saber.
- Fica
descansada. E obrigado, pelo cuidado! – agradeceu Antero, visivelmente emocionado.
E saiu a galope, com a leveza do mensageiro que se sabe portador de boas novas.
Por uns instantes, Maria de Jesus ficou a vê-lo afastar-se, e
desaparecer, na curva da estrada. Sentiu avolumar-se o aperto que sentia no
peito. Respirou fundo, para recuperar o fôlego. Era pena que aquelas fossem só
uma parte das notícias. As boas. Mas… havia outras.
( continua )
( continua )
Estou a ficar um bocadinho apreensivo relativamente aos últimos desenvolvimentos da “madrinha”, mas espero que não arranjes para ai problemas de maior...
ResponderEliminarGostei do texto. Ficamos, então, à espera de outras notícias. Parece-me que não serão lá muito agradáveis. Aguardemos.
EliminarPorque será que, de repente, os portugueses ficaram tão pessimistas?!...
EliminarPara além do "viver" e do olhar o mundo em que se vive, apresentem-me uma única razão válida para estar otimista, hoje.
ResponderEliminarPor exemplo, ter amigos que valem a pena...
ResponderEliminarOs amigos fazem sempre parte do "viver". Não os deixo em lado nenhum e permanecem a olhar o mundo comigo. Acredita que também não estão lá muito otimistas!
Eliminar(Pode ser que o narrador d"A Madrinha" dê a volta ao texto e Maria de Jesus acabe por trazer boas notícias.)