sábado, 31 de agosto de 2013

A MADRINHA (7)

Na Casa dos Álamos, acordava-se cedo. O anúncio do novo dia era dado pelos passos abafados da tia Clotilde e da velha governanta as quais, a pouco e pouco, se iam rodeando de sons e de cheiros que antecipavam, com vantagem, as badaladas do velho relógio de sala, que ressoavam por toda a casa. A estas, juntavam-se as vozes dos jornaleiros que, aos magotes, se vinham chegando, para a faina do dia. Enquanto o Sr. Rafael, acompanhado do Miguel, distribuía o trabalho e dava as últimas instruções, a família reunia-se, na grande cozinha do rés-do-chão, para a primeira refeição do dia. Este era o ritual familiar preferido de Maria Teresa. Aquele cheiro a café e pão frescos conseguiam despertá-la do sono mais profundo. Às vezes, no Inverno, ainda voltava para a cama, mas não num dia como aquele, com a sua estufa a ficar linda e com Alexandre a cuidar de todos os detalhes. Tinha acabado de se reunir à família, na cozinha, quando Miguel apareceu, à porta, com um vistoso açafate de figos lampos.
      - Bom dia, patrões! Isto estava em cima da mesa de pedra junto à adega e suponho que será cá para casa. De qualquer modo, não podem continuar lá, porque daqui a pouco bate lá o sol. 
Todos pareceram surpreendidos, menos Antero.
      - Fazes ideia de quem lá pôs os figos? – perguntou Clotilde ao cunhado, estranhando a sua falta de curiosidade.
      - Como é que queres que saiba, se eu ainda não saí de casa?
Ainda a família especulava acerca da origem dos figos e já Miguel estava de volta, com informação útil:
      - Afinal, o António Chora diz que quem lá pôs os figos foi a viúva do Zé da Tia e que esta comentou que a menina gostava muito de figos e que lhe parecia que, este ano, tinha tido poucos.
      - Pronto, está esclarecido o mistério dos figos – comentou Antero, tentando mudar de conversa.
      - Mas, está esclarecido, como? E onde é que a viúva do Zé da Tia tem as figueiras ou coisa que o valha? Ela não tem onde cair morta! Quase vive da caridade alheia! - ripostou Clotilde, exibindo a sua perspicácia.
      - Cá para mim, deram-lhos a ela e como eram demais, resolveu oferecer estes à Maria Teresa. E, virando-se para a filha:
      - Só tens que lhe agradecer!
Claro, claro! Mas lá que ela está bem informada, está!
      - Bem, tempo não lhe falta! - resmungou Clotilde, entre dentes, preparando-se para levantar a mesa.
No pátio, Antero Meireles cruzou-se com os homens do Cabeço que se preparavam para retomar o trabalho, na estufa. Deu os bons-dias e, quando passou pelo Alexandre, disse em tom discreto:
      - Diz à tua mãe que eu lhe agradeço a amabilidade.
      - Mas, o que é que há para agradecer? - perguntou o rapaz, um pouco intrigado.
      - Ela sabe – respondeu Antero, já uns metros mais à frente, dirigindo-se à cavalariça. Estava na hora de percorrer as propriedades, perpetuando o seu hábito do efeito surpresa. Nunca ninguém sabia, nem os próprios filhos, quando aparecia, onde aparecia, e quantas vezes aparecia no local onde, nesse dia, decorriam os trabalhos. Não havia nada como o respeito, condimentado com uma pitada de receio, para manter o pessoal na linha. Se assim não fosse, os abusos não tardariam.

Às obras na estufa, outras se seguiram na Casa dos Álamos, deixando atrás de si um rasto de modernidade e funcionalidade que, embora ainda incipiente, contrastava, fortemente, com as dos seus pares. Saltava à vista que o casamento de Maria Teresa e Alexandre não tardaria muito. E assim foi. O casamento foi marcado para Maio, o mês favorito de Maria Teresa. Tinha que ser em Maio!
      - Porquê Maio? É um mês como outro qualquer! –inquiriu o irmão mais novo, só para a picar.
      - Porque é o mês das flores e do tempo bonito! – esclareceu a irmã.
      - Sim, se descontares as trovoadas e o vento a assobiar por todo o lado, talvez tenhas razão – respondeu o irmão, afastando-se, enquanto trauteava uma canção lamecha, em voga.
Mas os ventos não correram de feição para a Casa dos Álamos e, em vez de um casamento, o mês de Maio trouxe-lhes, sem aviso prévio, aquela febre inexplicável que, recorrentemente, acometia Maria Teresa. Durante mais de uma semana, a febre, associada a alguns distúrbios respiratórios e digestivos, deixaram Maria Teresa num estado de prostração tal, que o casamento foi adiado. Para Setembro. Junho estava demasiado próximo e os meses áridos de Julho e Agosto estavam fora de questão. Além disso, o Dr. Daniel, o novo médico, entendeu que era tempo de aqueles achaques serem investigados, a sério. Para gláudio de toda a família, especialmente dos mais bem informados.
Maria de Jesus não sabia o que havia de fazer com a dor no peito, que tinha voltado. Não queria preocupar mais o Meireles. Sabia como os homens lidam mal com a doença e o mal-estar físico. Além disso, Antero estava sozinho. Clotilde era cunhado-dependente; a mãe, de idade avançada, requeria, ela própria, cuidados e repouso que a irmã, Júlia, providenciava, como se cuidasse de um valioso livro de dois volumes em que um deles corresse o risco de se perder; quanto às outras duas irmãs, ambas estavam demasiado ocupadas a evitar que o novo avançasse sobre o velho, que as modernices, como elas diziam, transpusessem os portões da Quinta do Freixo e tomassem, de assalto, os velhos hábitos e costumes daquele lugar, onde tudo era solene e tinha hora e sítio marcados. Para as tias e respetivas famílias, Maria Teresa, simplesmente, não tinha cuidado com o sol, comia fruta apanhada da árvore, gostava de vaguear pelos estábulos, enfim, nem parecia uma Meireles. Depois, sofria as consequências. Mas não porque elas não avisassem!

Maria de Jesus não tinha tempo a perder. Procurou o doutor Daniel e contou-lhe o que sabia da história daquelas febres, na família do pai de Maria Teresa. Claro, que ela nunca tinha ouvido ninguém falar nisso, mas os registos do Dr. Justino lá estavam, preto no branco. Duas tias – avós, do lado paterno de Antero Meireles tinham um historial de febres e outros distúrbios associados, em tudo semelhantes aos de Maria Teresa, e que os médicos nunca conseguiram explicar. Uma delas tinha, mesmo, falecido em plena crise e as notas do Dr. Justino, sobre o acontecimento, estavam cheios de pontos de interrogação.
O Dr. Daniel inspirava-lhe confiança. Apesar de muito novo, tinha talento, ambição e muita vontade de saber, três armas que Maria de Jesus considerava poderosas nas mãos de um homem que tem consciência de si. Os pais tinham morrido num acidente, quando estava a começar os estudos na Universidade, mas, ficara-lhe juízo bastante para, com a ajuda do avô, continuar a sua viagem. O mundo dos estudos tinha-lhe servido de refúgio e de bordão e o seu futuro auspiciava-se brilhante. Recebeu Maria de Jesus, gentilmente, e ouviu-a com toda a atenção.
      - Sabe, não quis preocupar mais o Antero, mas achei que o doutor devia saber tudo isto. Pode ser importante para os orientar nos exames a fazer – disse Maria de Jesus, pedindo, mais uma vez, desculpa por o ter incomodado.
      - Fez muito bem, não vale a pena sobrecarregá-los com mais preocupações. E fico satisfeito por me ter disponibilizado estas notas. Penso que vou seguir algumas destas pistas que, aliás, os relatos de Maria Teresa confirmam.
      - Oxalá, que tudo se esclareça e que a Maria Teresa se consiga livrar destes incómodos. É que, fora estas crises, é uma rapariga cheia de vida e que parece que vende saúde! – acrescentou Maria de Jesus.
       - Felizmente, hoje, temos outros meios que os médicos desse tempo não tinham. E há doenças a que só agora se começa a prestar a devida atenção. Estou convencido que é o caso da de Maria Teresa.

Quando a febre desapareceu e o seu estado geral o permitiu, Maria Teresa e o pai rumaram a Lisboa. Aguardavam-nos dois quartos de hotel nas imediações da Clínica Santa Helena e uma série de consultas, exames e análises, na referida clínica, sob a orientação da enfermeira Isilda, prima de Alexandre. O pai regressou no dia seguinte, um pouco a contragosto, mas rendido à simpatia de Isilda que insistiu para que Maria Teresa se mudasse para casa dela, enquanto os procedimentos médicos o exigissem. Faziam companhia uma à outra e ainda haveria um tempinho para lhe mostrar um pouco de Lisboa. Podia ir descansado. Maria Teresa aproveitaria, também, para conhecer o resto da família. Assim, já não seriam ilustres desconhecidos, quando se encontrassem, no casamento. Pareceu-lhe bem. E Antero regressou aos seus afazeres.

                                                                                                                      ( continua )

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