domingo, 22 de setembro de 2013

A MADRINHA (9)

A notícia só chegou à aldeia no dia seguinte, quando os sinos dobraram a finados. À Casa dos Álamos chegou com o café da manhã, pela voz dos jornaleiros habituais. A defunta era a D. Teolinda Palhais, da Aldeia da Pena e não se falava de outra coisa. A sua fama advinha-lhe do facto de, durante quase trinta anos, ter vestido todas as famílias abastadas das redondezas, determinando, assim, os trajes e adornos com que se apresentavam em todas as ocasiões festivas da comunidade ou entre os seus pares. Parte da sua vida tinha sido passada em Lisboa, como modista, num atelier na Rua da Prata, mas regressou à terra para servir de amparo aos pais já idosos e doentes e, por ali ficou. No entanto, como profissional que era, mantinha estreito contacto com os seus congéneres na capital, onde se deslocava com frequência, não só para se manter a par da moda, mas também para se fazer portadora das novas revistas, tecidos e acessórios que faziam as delícias das suas clientes. E Maria Teresa não era exceção. O tecido para o vestido de noiva já estava comprado, o feitio escolhido e as medidas tiradas, mas, como mandava a tradição, o mesmo só seria confecionado na última semana, para que lhe assentasse como uma luva. Foi, pois, com grande alvoroço, que a filha de Antero Meireles se inteirou da situação.
      - E agora? O que é que eu faço? – perguntou Maria Teresa a si mesmo, mal podendo conter a sua deceção.
      - Vamos ter calma – aconselhou o pai - ainda temos quase quinze dias. Porque é que não telefonas à enfermeira Isilda e lhe pedes que te oriente, em Lisboa, na compra de um vestido já feito? Segundo me parece, vocês até ficaram amigas. O que é que achas? 
Maria Teresa suspirou, aliviada. 
      - É capaz de ser uma boa ideia! Depois do almoço, vou ao posto público telefonar-lhe – anuiu a rapariga. E assim fez.

No entanto, a conversa com Isilda deixou-a perplexa. A amiga disponibilizou-se, gentilmente, para a acompanhar no que fosse preciso, a casa estava à sua disposição, mas, perante a pena que sentiu em Maria Teresa por não poder ter o vestido que tinha idealizado, deu-lhe uma sugestão que a deixou estupefata:
      - Mas há uma solução melhor: se já tens o tecido e o modelo, falas com a minha tia Maria de Jesus e ela faz-te um vestido digno de uma princesa e em três tempos!
Só podia ter percebido mal. A Maria de Jesus? A mãe do Alexandre? – repetiu Maria Teresa, só para ter a certeza que estavam a falar da mesma pessoa.
      - Essa mesma. Quem havia de ser? E acredita que tem umas mãos de fada!
      - Umas mãos de fada? – pensou Maria Teresa, incapaz de emitir qualquer som.
Refeita da surpresa, mas sem saber o que dizer, a rapariga balbuciou:
      - Não sei. Não queria incomodá-la. Vou pensar nisso e depois digo-te o que decidi.
Isilda não pode deixar de sorrir para si mesma. De facto, não a espantava a hesitação de Maria Teresa. A tia Jesus, como lhe chamava, era uma caixinha de surpresas!
Em casa, as respostas às perguntas da tia foram tão evasivas que Clotilde chegou a pensar que o pedido de Maria Teresa não tinha tido o eco esperado, na amiga da capital:
      - Não me digas que essa tal Isilda não está para aí virada!
      - Não é nada disso, tia – reagiu a sobrinha - mas fez-me uma sugestão que me deixou baralhada. E contou à tia o sucedido.

      - Homessa! Só faltava casares-te com um vestido de noiva feito por uma costureira de meia tijela! Sempre queria saber o que é que ias dizer às tuas tias do Freixo. Havia de ser bonito!
A conversa foi interrompida por Antero e Alexandre que acabavam de largar o trabalho. Ambos perceberam que havia ali um assunto sério a ser tratado, mas as perguntas ficaram para depois. Quando a oportunidade surgiu, Alexandre quis saber o que estava a preocupar a noiva e ela acabou por lhe contar a conversa com a prima. Quanto a Antero, quando foi posto ao corrente das novidades, ficou em silêncio, por uns momentos, também ele sem saber o que pensar e, quando quebrou o silêncio, opinou:
      - A Isilda pareceu-me uma pessoa que sabe o que diz e de muito bom gosto, acho que deverias falar com a Maria de Jesus. No mínimo, ela dar-te-á um bom conselho.
E o conselho não se fez esperar. Tendo Alexandre como mensageiro, combinaram falar, no dia seguinte, à saída da missa. E assim aconteceu. 
Maria de Jesus imaginava todos os dilemas da futura nora e tentou sossega-la. 
      - Não se preocupe, Maria Teresa, vai ter o vestido que tinha escolhido, mas vamos ser discretas. Há um recém-nascido na família que eu ainda não conheço e há algum tempo que ando a pensar visitar. Pois é uma boa altura e, para todos os efeitos, a Maria Teresa aproveita a minha ida a Lisboa, para ter companhia e vai comprar o seu vestido de noiva. Só o seu pai deve saber a verdade, pois assim evita conflitos familiares. Leva-se o tecido e a revista e regressamos com o vestido pronto e tudo em paz. E fique descansada, o vestido vai ficar tal qual o imaginou.
Todas as dúvidas de Maria Teresa se dissiparam. Estava decidido. Assim seria. 

Quando, alguns dias depois, o vestido, digno de um conto de fadas, foi estendido sobre a cama de Maria Teresa, num quarto de janelas abertas, de par em par, para que os raios de sol pudessem realçar a sua beleza e as mulheres da família tiveram permissão de se aproximarem para dizerem de sua justiça, as reações não se fizeram esperar:
      - Mas que maravilha! – exclamou a tia Clotilde , completamente fascinada.
      - Que coisa linda! – repetiam , sem parar, as primas casadoiras.
      - Imagino o dinheirão que terá custado! – calculou a tia Rita, cuja avareza não se compadecia com o deslumbre  dos presentes.
      - Cada vez que penso que ainda te chegou a passar pela cabeça entregares o vestido na mão de uma curiosa, metida a costureira! – desabafou Clotilde, num gesto de alívio.
      - A sério?! – perguntou a tia Júlia , fixando Clotilde. E virando-se para Maria Teresa: que ideia mais tola, menina! Não se esqueça que é uma Meireles!
É claro que não esquecia. Nem podia. Elas faziam o favor de lho lembrar, todos os dias – pensou, com desagrado, Maria Teresa. Mas conteve-se. Aquela não era a altura certa para se rebelar. 

A fama do vestido trouxe consigo algumas surpresas. As senhoras de família que, infelizmente, não estavam disponíveis para assistir à cerimónia - era o que faltava! Qualquer dia , entra-nos o cocheiro pela porta adentro, e  pede-nos a filha em casamento!  - de repente,  todas tinham conseguido lidar com os seus compromissos inadiáveis e tinham muito gosto em acompanhar a menina Maria Teresa, num dia tão especial como aquele.
      - Ah, sim?! - indignou-se Clotilde. Isso é o que se chama ver para crer. E voltou aos seus afazeres, ajeitando o folho do avental.
E o grande dia chegou.
A aldeia despovoou-se para ver os noivos e, entre os que torciam para que o conto de fadas desse certo e os que torciam para que o exemplo não pegasse – era o que faltava! – ninguém conseguiu resistir à magia do momento e todos, em corpo ou só em espírito , ergueram a sua taça à saúde  do jovem casal.
      - A D. Teolinda não teria conseguido ir tão longe, com o teu vestido, Maria Teresa. Lisboa é, de facto, outra coisa! Até a mãe do Alexandre, estava de uma elegância de fazer inveja! - constatou a D. Fernanda Gouveia – durante uma  conversa de fim de tarde, com as amigas, enquanto percorriam a nova estufa que, estava-se mesmo a ver, iria servir de inspiração a algumas mais. 
      - De fazer inveja, não diria, mas não há dúvida que a aconselhaste bem, Maria Teresa – anuiu a esposa do Galvão Teles, com uma pontinha de despeito à mistura. 
Maria Teresa sorriu, vitoriosa. Olhou em redor à procura de Maria de Jesus. Viu-a e esboçou um gesto de chamamento. Maria de Jesus aproximou-se do grupo.
      - Quero apresentar-vos a autora do meu vestido e das suas próprias roupas. Não imaginam as coisas que estas mãos conseguem fazer! E abraçou a sogra, num gesto carinhoso.
      - Ora, faz-se o que se pode, quando é preciso – respondeu Maria de Jesus, com naturalidade.
A primeira reação foi um riso nervoso. Este, propagou-se como um relâmpago, e durou o tempo exato que levaram a perceber que Maria Teresa estava mesmo a falar a sério. De repente, os semblantes retraíram - se, as gargantas aclararam-se, mas as palavras teimaram em atraiçoar, mesmo as melhores das intenções. Não fora o leque da tia Clotilde abafar-lhe o rubor e teria havido desmaio, pela certa. Salvou-as o sentido prático da tia Rita: 
      - Já imaginou, o dinheiro que pode ganhar com a sua arte, agora que ficámos sem a D. Teolinda?
      - Nada que, alguma vez, me pudesse compensar pelo tédio que isso iria trazer à minha vida! –respondeu Maria de Jesus, subindo com passo firme os degraus de cantaria que conduziam à varanda do primeiro andar. No patamar, hesitou um segundo, parou, dando a impressão que tinha algo mais para dizer. Uma lufada de esperança varreu o grupo de amigas. Mas Maria de Jesus limitou-se a sorrir e convidou:
      - Subam, que vale a pena! Hoje vamos ter um lindo pôr-do-sol!         
                                              
                                                                                                                       ( continua )

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