A ausência de Maria Teresa mergulhou a Casa dos Álamos numa
semipenumbra de sons e gestos que, não fora o barulho de fundo causado pelas
obras em curso, dela se diria ter sido, há muito, abandonada pelos seus
habitantes. No regresso, o que Maria Teresa veio encontrar, não lhe agradou. O
pai, visivelmente mais magro e um pouco pálido, parecia, de repente, sem nada
para dizer e pouco que perguntar. E ela que tinha tantas coisas para partilhar
com ele! Mas, Maria Teresa insistia:
- Sabes que até
fui a uma matiné no cinema Condes? E
que também visitei o Mosteiro dos Jerónimos? E…? – aqui, Maria Teresa calou-se.
Decididamente, o pai não estava a ouvir nada do que ela estava a dizer.
- E disseram-te
quando é que os resultados estarão prontos? – perguntou o pai, completamente
alheio à conversa da filha.
- Oh, pai! Não
ouviu nada do que eu tenho estado para aqui a dizer, pois não?
- Desculpa.
Contas depois, está bem? – pediu Antero, enquanto se levantava para sair.
- Então só vai
saber tudo daqui a quinze dias, que é o tempo que vai levar até que o doutor Daniel receba os resultados – informou Maria Teresa, tentando mostrar um ar
despreocupado.
- Quinze dias?!
…mas, tanto tempo?! – estranhou Meireles, apreensivo.
- Acha muito? –
admirou-se a filha.
- Uma eternidade
– respondeu o pai, com desalento.
Os dias correram lentos e sufocantes, não só pelo calor que já
se fazia sentir mas, sobretudo, devido à ansiedade provocada pela espera de
notícias da capital. Ao 13º dia, porém, estava a família reunida para o almoço,
quando bateram à porta. Clotilde, que tinha ido à cozinha buscar uma travessa, gritou,
lá de dentro:
- Não se
incomodem, eu atendo! E juntando a palavra à ação, deu a volta pela adega e atendeu
à porta. Era um recado do doutor Daniel. Os resultados já tinham chegado. Quando o
Sr. Meireles e a menina Maria Teresa quisessem, já podiam por lá passar.
Clotilde sentiu as pernas fraquejarem, mas recompôs-se. Sim, senhor, o recado
estava entregue. E voltou para dentro. De volta à sala, foi interpelada por
Armando, que achou a tia um pouco lívida:
- Aconteceu
alguma coisa? Parece nervosa!
- E não é para
estar? – perguntou, por sua vez, a tia, mostrando-se exaltada - o Miguel nunca sabe onde põe as coisas e depois
interrompe-nos o almoço para vir perguntar por elas - mentiu a tia, tentando
assegurar o sossego da refeição. O silêncio de Clotilde, no entanto, não passou
despercebido a Antero e a suspeição foi crescendo, à medida que a refeição ia
decorrendo. Além disso, o comportamento de Miguel que o comentário da tia fazia
transparecer não assentava no perfil do rapaz. Miguel era uma pessoa
responsável e que nunca lhes interromperia uma refeição de ânimo leve. Aguardou
pelo fim do almoço, para perguntar:
- Então,
Clotilde, já podes dizer o que aconteceu há pouco, para teres ficado tão
perturbada?
Todos se entreolharam e fixaram a tia. Esta balbuciou, sem
qualquer justificação:
- O doutor Daniel
já tem os resultados dos exames. E levantou-se, de rompante, em direção à
cozinha.
Por alguns instantes, todos ficaram em silêncio. Foi Maria Teresa
quem quebrou o embaraço:
- Então, quer
dizer que já lá podemos ir!
E foram.
O doutor Daniel pediu que lhe servissem o café no seu local favorito, sob o telheiro do jardim das traseiras. Tinha duas visitas de rotina para fazer, mas estava certo de que os Meireles não tardariam. A empregada conduzi-los-ia até ele.
O doutor Daniel pediu que lhe servissem o café no seu local favorito, sob o telheiro do jardim das traseiras. Tinha duas visitas de rotina para fazer, mas estava certo de que os Meireles não tardariam. A empregada conduzi-los-ia até ele.
De facto, pai e filha não se fizeram esperar.
- Boa tarde,
doutor –cumprimentaram os visitantes. Pedimos desculpa, por entrarmos, assim,
por aqui adentro, mas a Albertina indicou-nos este caminho.
- E fizeram
muito bem. Fazem favor de se sentarem.
Não aceitaram café. Tinham acabado de almoçar. Estavam bem
assim. O médico não insistiu. Aliás, com o nó que deveriam ter na garganta, não
o recomendaria. E foi direto ao assunto:
- Imagino que
estão um pouco ansiosos e, por isso, sem mais delongas, digo-lhes que a Maria
Teresa, em termos de saúde, está ótima. No entanto, como todos nós, tem os seus
pontos fortes e fracos. Não se trata de uma doença, propriamente dita, mas é
alérgica a algumas plantas e flores e sofre de intolerância à lactose o que,
tudo conjugado e sobrepondo-se, muitas vezes, lhe tem causado todos os incómodos
que conhecem. E o doutor Daniel explicou, detalhadamente, o que tudo aquilo
queria dizer, o que eram alérgenos e as precauções que implicavam. Quando
terminou, perguntou a Maria Teresa:
- Por acaso, não
se recorda se houve alguma quebra na sua rotina relativamente a locais onde
tenha estado ou ido ou algo diferente que tenha comido, por altura desta última
crise?
- Não me lembro
de ter feito nada de especial. No primeiro dia em que comecei a sentir falta de
ar e um aperto na garganta foi na quinta da minha avó. Uma das minhas primas
fazia anos e foi preparado um lanche ao ar livre, à sombra das árvores, junto
ao muro. Não apanhei sol e estava fresquinho. Quanto à comida, não comi nada que
me pudesse ter causado a má-disposição que se seguiu.
- Mas, se bem me lembro, além do velho
freixo que dá o nome à quinta, há, por lá, umas acácias não é verdade? – indagou
o médico.
- Sim, é
verdade. Há bastantes e estão lindas, todas em flor – confirmou Maria Teresa
O médico sorriu e disse:
- Ora, aí está, uma beleza a evitar! A flor
de acácia é uma das suas grandes inimigas, o seu grau de alergia à mesma, é
muito elevado. Seguem-lhe a flor de oliveira e as gramíneas. De facto, o espaço
de manobra não é grande para quem, como a Maria Teresa, vive numa quinta. E
laticínios – acrescentou o médico - costuma comer?
- Muito pouco.
Não gosto de leite e como muito pouco queijo. Só abuso do requeijão com o doce
de abóbora, da tia Clotilde e…, mas agora me lembro: nessa semana comi
requeijão várias vezes.
- Pois, aí tem. E
olhe que o seu grau de intolerância à lactose é considerável. Para já, vou-lhe
fazer algumas recomendações mais específicas, receitar- lhe um anti-histamínico
e um descongestionante, para qualquer primeiro sintoma e vamos, sobretudo,
estar mais atentos. Em caso de qualquer episódio semelhante aos que costuma
ter, deve tentar recordar - se dos alimentos que ingeriu e a que vegetação ou
tipo de atmosfera esteve exposta.
- Quer dizer que
é possível que haja outros alérgenos, como nos explicou, há pouco? – perguntou
Antero que se mantivera calado, quase todo o tempo, surpreendido com o problema da filha.
- Exatamente. A
alergologia é uma área de estudo ainda muito recente e sobre a qual temos muito
mais perguntas do que respostas. Uma coisa é certa: as alergias devem ser
levadas a sério porque, dependendo do tipo e do grau, podem ser fatais.
Esclarecidos e mais tranquilos, pai e filha encetaram o
caminho de regresso. Não escolheram o caminho mais curto. Queriam prolongar
aqueles momentos a sós. É que, finalmente, Antero estava ansioso por saber, ao
pormenor, tudo o que tinha acontecido, em Lisboa, na sua ausência. Esta
caminhada, juntos, dar-lhe-ia a possibilidade de estabelecer, com a filha, aquele clima de cumplicidade que lhes era tão grato. Ele sentia-se necessário,
ela sentia-se ouvida, e tudo isto, sem estratégia e sem fanatismo.
Em casa, foram recebidos com alguma ansiedade, ludibriada
com risos nervosos e um lanche especial ao qual Alexandre tinha sido convidado
a juntar-se, pela tia Clotilde. Esta, não tirava os olhos da estrada e, até o
portão tinha sido, naquele dia, deixado displicentemente aberto, para que
pudesse vê-los aproximarem-se e preparar-se para o que do seu semblante
transparecesse. E foi a vivacidade dos seus gestos e a evidente boa disposição,
de ambos, que encorajou Clotilde a falar primeiro:
- Estava a ver
que ias perder o meu requeijão, hoje, Maria Teresa!
- E vou, tia.
Infelizmente, o seu delicioso requeijão tem os dias contados – retorquiu a
rapariga, trocando com o pai um sorriso brincalhão.
- Mas, o que é
que se passa com o meu requeijão? Alguém me pode explicar o que aconteceu? –
perguntou a tia, algo desapontada.
Todos ouviram a explicação dada por Maria Teresa, com alguma
perplexidade. Mas onde é que já se vira, uma coisa assim?! Mas que maçada!
Foi a vez de Antero acrescentar:
- Mas isso, não
é tudo! Vamos ter de abater a acácia junto ao portão oeste da quinta, para
evitar problemas.
- Nem pensar! –
irrompeu Maria Teresa, intempestiva – ela chegou primeiro, eu é que vou ter de
me acomodar!
Quem não estava disposta a acomodar-se era Maria de Jesus.
Contudo, … nem mesmo ela própria imaginava o que o futuro lhe reservava.
( continua )
( continua )
Maria Teresa já sabe das maleitas que a apoquentam. Agora o problema está no mundo que a rodeia: árvores, produtos da terra... mas a narrativa continua "em suspenso": Maria de Jesus não "imagina o futuro que a espera". Bom, mau?... logo se verá.
ResponderEliminarO texto oito segurou-me do princípio ao fim. A narrativa é simples, as personagens já estão bem definidas e avançam na intriga no tempo adequado. Os diálogos vivos deixam o leitor agarrado à estória. A imagem - penso que é a primeira publicada nesta sequência de textos - para além da sua beleza, está totalmente adequada à estória.
Parabéns por mais este bom texto.
Feliciano
Não há dúvida que só posso mesmo contar com os inimigos para me ajudarem a manter os pés em terra firme. Os amigos são todos suspeitos! ( mas uns queridos!)
ResponderEliminarAbraço
Falemos do que interessa: o "post" nove vai sair quando?
EliminarTalvez ainda hoje. Boa leitura!
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