sexta-feira, 13 de setembro de 2013

A MADRINHA (8)

A ausência de Maria Teresa mergulhou a Casa dos Álamos numa semipenumbra de sons e gestos que, não fora o barulho de fundo causado pelas obras em curso, dela se diria ter sido, há muito, abandonada pelos seus habitantes. No regresso, o que Maria Teresa veio encontrar, não lhe agradou. O pai, visivelmente mais magro e um pouco pálido, parecia, de repente, sem nada para dizer e pouco que perguntar. E ela que tinha tantas coisas para partilhar com ele! Mas, Maria Teresa insistia:
       - Sabes que até fui a uma matiné no cinema Condes? E que também visitei o Mosteiro dos Jerónimos? E…? – aqui, Maria Teresa calou-se. Decididamente, o pai não estava a ouvir nada do que ela estava a dizer.
      - E disseram-te quando é que os resultados estarão prontos? – perguntou o pai, completamente alheio à conversa da filha.
     - Oh, pai! Não ouviu nada do que eu tenho estado para aqui a dizer, pois não?
     - Desculpa. Contas depois, está bem? – pediu Antero, enquanto se levantava para sair.
     - Então só vai saber tudo daqui a quinze dias, que é o tempo que vai levar até que o doutor Daniel receba os resultados – informou Maria Teresa, tentando mostrar um ar despreocupado.
     - Quinze dias?! …mas, tanto tempo?! – estranhou Meireles, apreensivo.
     - Acha muito? – admirou-se a filha.
     - Uma eternidade – respondeu o pai, com desalento.

Os dias correram lentos e sufocantes, não só pelo calor que já se fazia sentir mas, sobretudo, devido à ansiedade provocada pela espera de notícias da capital. Ao 13º dia, porém, estava a família reunida para o almoço, quando bateram à porta. Clotilde, que tinha ido à cozinha buscar uma travessa, gritou, lá de dentro:
      - Não se incomodem, eu atendo! E juntando a palavra à ação, deu a volta pela adega e atendeu à porta. Era um recado do doutor Daniel. Os resultados já tinham chegado. Quando o Sr. Meireles e a menina Maria Teresa quisessem, já podiam por lá passar. Clotilde sentiu as pernas fraquejarem, mas recompôs-se. Sim, senhor, o recado estava entregue. E voltou para dentro. De volta  à sala, foi interpelada por Armando, que achou a tia um pouco lívida:
      - Aconteceu alguma coisa? Parece nervosa!
      - E não é para estar? – perguntou, por sua vez, a tia, mostrando-se exaltada - o  Miguel nunca sabe onde põe as coisas e depois interrompe-nos o almoço para vir perguntar por elas -­ ­ mentiu a tia, tentando assegurar o sossego da refeição. O silêncio de Clotilde, no entanto, não passou despercebido a Antero e a suspeição foi crescendo, à medida que a refeição ia decorrendo. Além disso, o comportamento de Miguel que o comentário da tia fazia transparecer não assentava no perfil do rapaz. Miguel era uma pessoa responsável e que nunca lhes interromperia uma refeição de ânimo leve. Aguardou pelo fim do almoço, para perguntar:
      - Então, Clotilde, já podes dizer o que aconteceu há pouco, para teres ficado tão perturbada?
Todos se entreolharam e fixaram a tia. Esta balbuciou, sem qualquer justificação:
      - O doutor Daniel já tem os resultados dos exames. E levantou-se, de rompante, em direção à cozinha.
Por alguns instantes, todos ficaram em silêncio. Foi Maria Teresa quem quebrou o embaraço:
      - Então, quer dizer que já lá podemos ir!
 E foram.
O doutor Daniel pediu que lhe servissem o café no seu local favorito, sob o telheiro do jardim das traseiras. Tinha duas visitas de rotina para fazer, mas estava certo de que os Meireles não tardariam. A empregada conduzi-los-ia até ele.
De facto, pai e filha não se fizeram esperar.
      - Boa tarde, doutor –cumprimentaram os visitantes. Pedimos desculpa, por entrarmos, assim, por aqui adentro, mas a Albertina indicou-nos este caminho.
      - E fizeram muito bem. Fazem favor de se sentarem.
Não aceitaram café. Tinham acabado de almoçar. Estavam bem assim. O médico não insistiu. Aliás, com o nó que deveriam ter na garganta, não o recomendaria. E foi direto ao assunto:
      - Imagino que estão um pouco ansiosos e, por isso, sem mais delongas, digo-lhes que a Maria Teresa, em termos de saúde, está ótima. No entanto, como todos nós, tem os seus pontos fortes e fracos. Não se trata de uma doença, propriamente dita, mas é alérgica a algumas plantas e flores e sofre de intolerância à lactose o que, tudo conjugado e sobrepondo-se, muitas vezes, lhe tem causado todos os incómodos que conhecem. E o doutor Daniel explicou, detalhadamente, o que tudo aquilo queria dizer, o que eram alérgenos e as precauções que implicavam. Quando terminou, perguntou a Maria Teresa:
      - Por acaso, não se recorda se houve alguma quebra na sua rotina relativamente a locais onde tenha estado ou ido ou algo diferente que tenha comido, por altura desta última crise?
      - Não me lembro de ter feito nada de especial. No primeiro dia em que comecei a sentir falta de ar e um aperto na garganta foi na quinta da minha avó. Uma das minhas primas fazia anos e foi preparado um lanche ao ar livre, à sombra das árvores, junto ao muro. Não apanhei sol e estava fresquinho. Quanto à comida, não comi nada que me pudesse ter causado a má-disposição que se seguiu.
      - Mas, se bem me lembro, além do velho freixo que dá o nome à quinta, há, por lá, umas acácias não é verdade? – indagou o médico.
      - Sim, é verdade. Há bastantes e estão lindas, todas em flor – confirmou Maria Teresa
O médico sorriu e disse:
      - Ora, aí está, uma beleza a evitar! A flor de acácia é uma das suas grandes inimigas, o seu grau de alergia à mesma, é muito elevado. Seguem-lhe a flor de oliveira e as gramíneas. De facto, o espaço de manobra não é grande para quem, como a Maria Teresa, vive numa quinta. E laticínios – acrescentou o médico - costuma comer?
      - Muito pouco. Não gosto de leite e como muito pouco queijo. Só abuso do requeijão com o doce de abóbora, da tia Clotilde e…, mas agora me lembro: nessa semana comi requeijão várias vezes.
      - Pois, aí tem. E olhe que o seu grau de intolerância à lactose é considerável. Para já, vou-lhe fazer algumas recomendações mais específicas, receitar- lhe um anti-histamínico e um descongestionante, para qualquer primeiro sintoma e vamos, sobretudo, estar mais atentos. Em caso de qualquer episódio semelhante aos que costuma ter, deve tentar recordar - se dos alimentos que ingeriu e a que vegetação ou tipo de atmosfera esteve exposta.
      - Quer dizer que é possível que haja outros alérgenos, como nos explicou, há pouco? – perguntou Antero que se mantivera calado, quase todo o tempo, surpreendido com  o problema da filha.
      - Exatamente. A alergologia é uma área de estudo ainda muito recente e sobre a qual temos muito mais perguntas do que respostas. Uma coisa é certa: as alergias devem ser levadas a sério porque, dependendo do tipo e do grau, podem ser fatais.

Esclarecidos e mais tranquilos, pai e filha encetaram o caminho de regresso. Não escolheram o caminho mais curto. Queriam prolongar aqueles momentos a sós. É que, finalmente, Antero estava ansioso por saber, ao pormenor, tudo o que tinha acontecido, em Lisboa, na sua ausência. Esta caminhada, juntos, dar-lhe-ia a possibilidade de estabelecer, com a filha, aquele clima de cumplicidade que lhes era tão grato. Ele sentia-se necessário, ela sentia-se ouvida, e tudo isto, sem estratégia e sem fanatismo.
Em casa, foram recebidos com alguma ansiedade, ludibriada com risos nervosos e um lanche especial ao qual Alexandre tinha sido convidado a juntar-se, pela tia Clotilde. Esta, não tirava os olhos da estrada e, até o portão tinha sido, naquele dia, deixado displicentemente aberto, para que pudesse vê-los aproximarem-se e preparar-se para o que do seu semblante transparecesse. E foi a vivacidade dos seus gestos e a evidente boa disposição, de ambos, que encorajou Clotilde a falar primeiro:
      - Estava a ver que ias perder o meu requeijão, hoje, Maria Teresa!
      - E vou, tia. Infelizmente, o seu delicioso requeijão tem os dias contados – retorquiu a rapariga, trocando com o pai um sorriso brincalhão.
      - Mas, o que é que se passa com o meu requeijão? Alguém me pode explicar o que aconteceu? – perguntou a tia, algo desapontada.
Todos ouviram a explicação dada por Maria Teresa, com alguma perplexidade. Mas onde é que já se vira, uma coisa assim?! Mas que maçada!
Foi a vez de Antero acrescentar:
      - Mas isso, não é tudo! Vamos ter de abater a acácia junto ao portão oeste da quinta, para evitar problemas.
      - Nem pensar! – irrompeu Maria Teresa, intempestiva – ela chegou primeiro, eu é que vou ter de me acomodar!

Quem não estava disposta a acomodar-se era Maria de Jesus. Contudo, … nem mesmo ela própria imaginava o que o futuro lhe reservava.


                                                                                                               ( continua )

4 comentários:

  1. Maria Teresa já sabe das maleitas que a apoquentam. Agora o problema está no mundo que a rodeia: árvores, produtos da terra... mas a narrativa continua "em suspenso": Maria de Jesus não "imagina o futuro que a espera". Bom, mau?... logo se verá.
    O texto oito segurou-me do princípio ao fim. A narrativa é simples, as personagens já estão bem definidas e avançam na intriga no tempo adequado. Os diálogos vivos deixam o leitor agarrado à estória. A imagem - penso que é a primeira publicada nesta sequência de textos - para além da sua beleza, está totalmente adequada à estória.
    Parabéns por mais este bom texto.
    Feliciano

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  2. Não há dúvida que só posso mesmo contar com os inimigos para me ajudarem a manter os pés em terra firme. Os amigos são todos suspeitos! ( mas uns queridos!)
    Abraço

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    1. Falemos do que interessa: o "post" nove vai sair quando?

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